"Vai morrer todas duas": conversas de WhatsApp revelam como facção articulou execução de irmãs no Pirambu
Áudios e mensagens interceptados pelo MPCE mostram o monitoramento das vítimas indo "comprar pão" à ordem final do líder do grupo. Irmãs foram mortas por colaborarem com a Polícia
"Fica na infra aí ... vai morrer todas duas meu fi". A frase, enviada por meio do aplicativo WhatsApp, decidiu o destino das irmãs Francisca de Fátima Machado de Sousa e Antonieta Machado de Sousa. As vítimas foram executadas durante o dia no bairro Pirambu, em Fortaleza, no mês setembro.
A denúncia do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), obtida pelo POVO, revela como integrantes da facção criminosa Comando Vermelho (CV) utilizaram grupos de WhatsApp para monitorar, julgar e condenar as duas mulheres.
Na sexta-feira, 5, mais um suspeito do caso foi preso. O motivo das execuções é que as irmãs estavam colaborando com a Polícia Civil para elucidar o assassinato de um familiar.
O MPCE decodificou os termos usados pelos criminosos nas mensagens. "Infra" é a abreviação de "infraestrutura". No contexto da conversa interceptada, significava que o acusado Davi Lucas seria responsável direto pelos assassinatos e pelo monitoramento das vítimas.
"Ganharam o pino" é uma expressão usada após o duplo homicídio e faz referência ao "pinote", ou seja, que os atiradores conseguiram fugir do local.
O "corre" é definido como as atividades cotidianas da facção, especialmente o tráfico de drogas. Em um dos áudios, um criminoso reclama que precisa matar as irmãs rápido para "voltar pro corre".
"Agora é a vez delas"
A articulação do crime foi descoberta após a apreensão do celular de Davi Lucas da Silva, preso logo após a execução. A extração de dados expôs a hierarquia do crime. As conversas mostram o diálogo com Francisco Teixeira Parente, conhecido "Mongol", apontado como chefe da facção naquela comunidade e mandante das execuções.
"Mongol" afirma que as mortes eram uma represália. As vítimas eram mãe e tia de Antônio Carlos Machado de Sousa, o "Banana", morto em agosto. Elas ajudavam a Polícia a prender os assassinos do rapaz e viraram alvo.
"Dei mesmo só um tempo mesmo, só pra acalmar a morte do safado lá (referindo-se ao filho da vítima), para depois nós pegar elas. Agora é a vez delas", escreveu o criminoso.
Enquanto "Mongol" dava as ordens, Davi Lucas atuava como "olheiro" e narrava a rotina das vítimas em tempo real no grupo da facção.
Logística da execução
Na manhã do crime, no dia 4 de setembro, Davi avisa que o momento do ataque se aproximava. "Dá atenção, tava as duas aqui agora... uma fechou a porta e a outra foi bem comprar o pão, porque acordaram agora... jajá elas voltam".
Após alguns minutos, a emboscada foi montada. As irmãs foram surpreendidas na calçada de uma farmácia na avenida Presidente Castelo Branco e atingidas por diversos disparos na cabeça e nas costas.
Às 10h11min, Davi envia a confirmação do serviço ao chefe afirmando que as vítimas estavam mortas e os atiradores haviam conseguido fugir. "Ganharam o pino", ele afirma.
Além do mandante e do olheiro, o MPCE denunciou Gabriel Lima dos Santos, conhecido como Davizim e Vanderson da Silva Alves, B2.
Nas conversas interceptadas, "Davizim" afirmada que o duplo homicídio seria uma tarefa que precisava ser cumprida para que ele pudesse voltar a vender drogas.
"Matar elas mais rápido mah, pra voltar pro corre... só tá empatando mesmo essas bixa aí", disse o acusado em áudio.
Após a execução, relatos contidos na denúncia apontam que o grupo comemorou o sucesso da ação "dando risadas".
Irmão com deficiência ficou desamparado após extermínio da família
O Ministério Público destaca, no documento obtido pelo O POVO, que Francisca de Fátima era a única cuidadora do irmão, uma pessoa com deficiência física que morava com ela.
Com a morte das duas irmãs e do sobrinho (filho de Fátima), toda a família foi exterminada e o homem ficou "privado do convívio" familiar e em situação de total desamparo, "à mercê da própria sorte", conforme relata a promotoria.
O MPCE solicitou condenação dos réus por homicídio qualificado e organização criminosa, mas também uma reparação financeira aos familiares sobreviventes.
O promotor do caso pediu a fixação de R$ 40.500,00 como valor mínimo de indenização, usando como base o triplo do valor de referência do antigo seguro DPVAT, devido à natureza dolosa e cruel do crime.
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Disputa entre facções transformou bairros de Fortaleza em campos de batalha
A região do Grande Pirambu, Carlito Pamplona e Barra do Ceará vive sob tensão diante da guerra entre facção criminosa de origem carioca Comando Vermelho (CV) e a Guardiões do Estado (GDE), que tornou-se Terceiro Comando Puro (TCP).
Em fevereiro de 2022 foi registrada a execução de Givanildo Oliveira, o "Gigi", dono do portal de notícias Pirambu News. Ele foi morto a tiros no bairro Pirambu, horas após noticiar a prisão de um suspeito de homicídio na área. O crime foi interpretado como uma tentativa de silenciar a divulgação de fatos policiais na comunidade.
Em agosto de 2023, uma série de ataques a veículos e incêndios criminosos, com ônibus queimados, foi registrada no Grande Pirambu,
No dia 31 de janeiro de 2024 foi registrada a morte de "Biu" em operação policial no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro. Fábio de Almeida Maia, o "Biu" era apontado como o "02" da hierarquia do tráfico no Pirambu e comandava as ações à distância.
Em fevereiro de 2024, no dia seguinte a confirmação da morte, o CV ordenou um "luto forçado" no Grande Parambu. Comerciantes foram obrigados a fechar as portas sob ameaça, ônibus deixaram de circular e houve queima de fogos em homenagem ao criminoso morto.
A situação se voltou contra policiais militares, quando no dia 12 de fevereiro o soldado da PM Bruno Lopes Marques foi assassinado em um bar no Carlito Pamplona. Uma camisa em homenagem a "Biu" foi encontrada no local.
No dia 17 de fevereiro cinco policiais militares que teriam adentrado na comunidade para vingar a morte do PM foram baleados.
No dia 2 maio de 2025 duas irmãs criadoras de conteúdo na Internet, Bianca dos Santos, 15 anos, e Maria Beatriz dos Santos, 20, foram executadas a tiros na Barra do Ceará.
Após a morte das irmãs, no mesmo dia, houve uma tentativa de chacina interpretada como um revide da morte das influenciadoras.
O namorado de Bianca, influenciador digital, conhecido como Moskow foi preso suspeito de envolvimento na ação. A Polícia afirmou que ele queria vingar a morte da namorada e, por isso, orquestrou um ataque a tiros na área rival. A morte das duas e a prisão do influenciador geraram manifestações.
No dia 6 de maio houve ainda uma chacina com quatro mortos em um campo de futebolSociety. Suspeitos do crime foram presos.
Em novembro de 2025, "Skidum", condenado mais de 37 anos de prisão por homicídios e organização criminosa e apontado como a principal liderança do Pirambu, permanece foragido. Carlos Mateus da Silva Alencar, "Skidum" ou "Fiel", permanece como o principal alvo das forças de segurança do Ceará.
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