Bairros de Fortaleza: José Walter, modelo de urbanização e berço de "lendas"
De cidade planejada ao gigante popular de Fortaleza, o "Zé Walter" nasceu nos anos 1970, enfrentou situações precárias e ganhou famas curiosas. Saiba mais sobre o território até 2°C mais fresco que o restante da Capital
O bairro Prefeito José Walter nasceu como projeto ambicioso de cidade planejada e se transformou em um dos maiores territórios populares de Fortaleza.
Criado inicialmente como um conjunto habitacional distante do Centro, combinou urbanização rápida, forte organização comunitária e episódios folclóricos que ajudaram a moldar a identidade local.
Hoje, é um território que reúne comércio consolidado, equipamentos públicos importantes e mais de 20 mil unidades habitacionais, entre casas, condomínios e lotes de apartamentos.
Saiba como o bairro surgido nos anos 1970 enfrentou crises de água, transporte, crimes e virou um dos maiores territórios populares de Fortaleza durante os 55 anos de fundação.
Prefeito José Walter: conheça a história do bairro
Em 1968, o então prefeito de Fortaleza, José Walter Cavalcante, adquiriu um terreno pertencente à família Montenegro, no limite da cidade com Maracanaú. O objetivo era criar um conjunto habitacional capaz de abrigar famílias de baixa renda, dentro do modelo do Banco Nacional de Habitação (BNH).
O projeto, desenhado pelo arquiteto Marrocos Aragão, previa ruas largas, quadras numeradas e serviços urbanos essenciais.“No início da década de 1970 foram entregues as primeiras 1.208 residências da 1ª etapa”, relatam estudos históricos sobre o bairro.
Ao todo, até a quarta etapa, o José Walter passou a contar com quase 5 mil casas, tornando-se o maior conjunto habitacional popular da América Latina na época. Aragão, previa uma “cidade modelo” para famílias de baixa renda.
José Walter, a fuga de moradores e o abandono precoce
Apesar do planejamento, a realidade foi dura para quem chegou ao bairro. Entre 1972 e 1973, muitos moradores desistiram de permanecer nas casas devido à distância do Centro, à precariedade do transporte, à falta de saneamento e à ausência de comércio básico.
“O bairro estava distante, sem ônibus confiáveis e sem água suficiente. Muitos decidiram voltar para outras regiões da cidade”, lembram registros históricos do O POVO.
A população do bairro era composta majoritariamente por migrantes do interior do Ceará, que precisavam se adaptar à vida urbana usando somente a própria experiência e sua força de trabalho.
Transporte foi a primeira grande revolta do bairro
O transporte era um problema constante. Os poucos ônibus disponíveis, operados por empresas como Nossa Senhora de Fátima, não conseguiam atender a demanda de milhares de pessoas.
“Motoristas não acostumados ao trajeto reclamavam do excesso de passageiros pendurados”, registrava O POVO em 1973. Moradores perdiam dias de trabalho devido aos atrasos. “Perdi meu dia de serviço por causa do atraso dos ônibus”, relatava um morador da 3ª etapa.
Hoje, o bairro conta com 90 pontos de ônibus e 3,48 km de vias de transporte urbano estruturado (BRT, metrô e VLT). Apesar disso, ainda não possui estação do Bicicletar e as ciclovias somam 6.217 metros lineares, um avanço modesto para a dimensão do território.
Água, crise permanente que virou marca do José Walter
Outro problema crônico era o abastecimento de água. Durante os anos 1970, muitas famílias enfrentavam dias e até semanas sem acesso à água potável. Moradores recorriam a cacimbas, poços artesianos e até compravam água de vendedores ambulantes.
“Chegamos a passar quinze dias sem uma gota d’água escorrer pelas torneiras”, relatava José Lopes Sobrinho ao O POVO. As filas para conseguir água eram intermináveis; crianças e mulheres carregavam baldes sob o sol escaldante.
Somente em 1981, com a inauguração do sistema Pacoti–Riachão e a chegada de energia da Usina de Paulo Afonso, a situação começou a melhorar significativamente, levando maior conforto e acesso aos serviços básicos à população.
Hoje, a cobertura vegetal urbana do bairro — 42,37%, equivalente a 3,58 km² — também contribui para um microclima mais fresco, cerca de 2 °C abaixo da média de Fortaleza.
Lixo, mato e buracos: o cenário de abandono
A precariedade urbana se manifestava nas ruas tomadas pelo lixo e buracos. Em 1979, O POVO registrou que “o lixo continua tomando conta da Avenida 1… a avenida está quase interditada por dois buracos que tomam quase toda a sua largura”.
O caminhão de lixo passava irregularmente e o lixo se espalhava pelas ruas, contaminando áreas residenciais e ameaçando a saúde dos moradores.
>> Siga o canal de Últimas Notícias O POVO no WhatsApp
Insegurança: assaltos, animais soltos e sensação de abandono
A ausência de policiamento e a presença de animais soltos nas ruas tornavam a vida ainda mais difícil na primeira década.
“Aqui não existe policiamento”, dizia Edvar Teixeira, administrador do conjunto, em reportagem do O POVO em 1976. Moradores relatavam arrombamentos frequentes e riscos constantes para crianças e idosos.
O caso “Cortabundas”: crime, pânico e lenda urbana dos anos 1980
Na década de 1980, o bairro foi abalado pelo episódio que ficou conhecido como “Corta-Bundas”. Um homem atacava mulheres com lâminas ou estiletes, causando ferimentos e deixando roupas rasgadas.
Três suspeitos foram investigados: Evandro, McDonald e Topo Gigio. Um dos casos mais chocantes envolveu a morte de Evandro, interpretada pela polícia como uma “queima de arquivo”. A mãe de McDonald, Dona Mirtes, também foi citada como suposta mandante, embora tenha negado.
“Ele cortava as vítimas com um estilete e emendava o ânus com a vagina”, afirmou o comissário Aírton Lopes ao O POVO em 1987. O caso gerou medo e especulação, e ainda hoje é lembrado por moradores como parte do folclore urbano.
A fama que virou lenda: o “Bairro dos Cornos”
O José Walter também ganhou notoriedade nacional por um motivo inusitado: o humor popular transformou o bairro na famosa “terra dos cornos”.
Segundo moradores antigos, a fama nasceu nos anos 1970, quando o conjunto ainda era composto por casas praticamente idênticas. Eram tantas construções iguais que, segundo as histórias, vizinhos entravam “na casa errada”, especialmente à noite, após voltarem do trabalho.
A narrativa humorada se reforçava pelo fato de muitos homens saírem cedo para trabalhar longe, enquanto as esposas ficavam em casa, já que o bairro não tinha comércio ou empregos locais. A lenda cresceu tanto que foi criada a Associação dos Cornos, com chifres decorativos e cordéis satíricos contando supostos casos de traições.
A brincadeira virou parte da identidade cultural do bairro e é sempre tratada com a irreverência típica do fortalezense.
Leia mais
Prefeito José Walter: como está o bairro hoje?
Com iniciais 8,44 km² de área, o bairro carrega uma história marcada por crises, resistência e um crescimento populacional de 59,92% em pouco mais de uma década — saltando de 33.427 moradores (2010) para 53.455 habitantes em 2022.
Os dados são do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan). A atual densidade populacional, de 6.333 hab./km², é uma das mais altas da Regional 8.
Com o passar das décadas, o José Walter se expandiu e agregou novas comunidades, incluindo a área ocupada pelo MST que deu origem ao Residencial Cidade Jardim. O bairro passou a reivindicar autonomia administrativa e tornou-se referência na periferia de Fortaleza.
Hoje, possui mais de 13 km², comércio próprio, escolas, centros de saúde e uma identidade cultural forte, com histórias de resistência e organização comunitária. O clima mais ameno e as ruas largas ainda dão ao bairro a sensação de uma pequena cidade dentro da metrópole.