Crochê e bordado: memória, técnica e convivência entre gerações

Crochê e bordado: memória, técnica e convivência entre gerações

Mulheres de diferentes idades discutem, ensinam e aprendem crochê e bordado, valorizando tradição e liberdade criativa

A transmissão de saberes manuais entre gerações vai além da técnica: envolve história, memória e convivência. Crochê, bordado e trabalhos com linho carregam tradições familiares e se renovam a cada novo grupo de idade, revelando como o passado se conecta com o presente através das mãos de quem produz.

A Casa Vida&Arte, ambiente dedicado à plataforma de cultura e entretenimento do O POVO na CasaCor Ceará 2025, promoveu um momento para compartilhar experiências nestas respectivas áreas. 

O evento reuniu mulheres de diferentes idades, permitindo observar como a arte manual funciona como elo entre histórias, aprendizados e perspectivas individuais.

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Mais do que ensinar ou aprender uma técnica, o compartilhamento dessas práticas é também uma forma de socialização.

Cada erro, acerto e criação contribui para a construção de vínculos e memórias coletivas. Ao longo do tempo, crochê e bordado deixaram de ser apenas “prendas do lar” para se tornarem expressões artísticas, ferramentas de cuidado pessoal e, em alguns casos, meios de geração de renda.

É nesse contexto que se dá o encontro de gerações, no qual as mais jovens absorvem conhecimentos das mais experientes, enquanto estas acompanham a inovação e a liberdade trazidas pelos aprendizes.

Casa Vida&Arte proporciona vivência com crochê e bordado

Ao chegar à CasaCor Ceará, meu receio inicial era que as participantes se mantivessem reservadas, evitando interação. Logo nos primeiros minutos, o receio desapareceu: todas se deram bem e o diálogo fluiu naturalmente, permeado por troca de experiências sobre trabalhos manuais.

Eu, repórter, acompanhei discretamente, registrando a dinâmica entre elas enquanto falavam sobre como aprendem, produzem e adquirem suas peças.

Maria Coelho, 54 anos, ex-analista ambiental que se dedica integralmente ao artesanato, relatou seu início nas práticas aos 12 anos, quando aprendeu crochê com a noiva do primo.

“Naquela época, era uma forma de arte”, recorda. Ela descreve o processo com atenção aos detalhes: “A primeira peça que fiz ainda uso hoje. É algo que carrega um propósito”.

Sobre o encontro, destacou: “Não dou prazo nas minhas peças, mas sei que preciso pagar as contas. Às vezes, começo duas ou três peças ao mesmo tempo, cada uma no seu tempo”.

Marlem Leitão, 61 anos, professora aposentada, rememora a infância e o aprendizado com familiares: “Eu tinha uma tia que não gostava que pegasse nas coisas dela. Eu tinha 9 anos e pegava o material da minha avó escondido para treinar, depois guardava tudo”, recorda.

Ela ressaltou o rigor que mantém ao criar suas peças: “Se faltar ou sobrar um ponto, não consigo deixar. Sempre volto e refaço. É a precisão que me atrai”. Marlem também integra o grupo Rede Estrela, junto com Maria Coelho e Ana Cristina, que se reúne semanalmente para bordar, trocar ideias e fortalecer vínculos.

“Temos mulheres de 60 anos ou mais que precisam de um espaço para socializar. O grupo funciona como um encontro de convivência; o crochê é apenas o pretexto”, explica.

Ana Cristina Araújo, 59 anos, compartilhou histórias de aprendizagem e reconstrução de peças: “Já desmanchei trabalhos inteiros, às vezes no terceiro ponto, para refazer. É um processo de paciência e atenção que se mantém ao longo dos anos”.

Ela também enfatizou a flexibilidade do bordado livre: “No ponto cruz, se errar, perdeu. No bordado livre, você acolhe o erro, segue, ajusta, sem perder o efeito final”, pontua a artesã.

Teresa Queirós, 62 anos, psicóloga, se aproximou das atividades manuais a partir da pintura e da costura, antes de descobrir o bordado livre.

Ela contextualiza: “Na minha família, o bordado estava ligado às prendas do lar. Hoje, ele é expressão artística, política e cultural, e também pode gerar renda”.

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Sobre os efeitos no bem-estar, afirma: “Bordando, fico concentrada no presente. Isso ajuda a organizar pensamentos, melhora a atenção e permite refletir sobre processos internos”.

Teresa destacou ainda a “nova onda” do bordado livre. “As jovens abriram caminho para a liberdade, quebrando as amarras do perfeito. Hoje, borda-se folhas, papel e tecidos sem preocupação com o avesso”, enfatiza.

 

Bia Mourão, 25 anos, artista visual, trouxe o olhar contemporâneo ao grupo. Aprendeu crochê ainda criança em Nova Russas e hoje combina técnica com liberdade criativa em suas obras.

“Não conto pontos. Começo com um e termino com outro. Essa liberdade me permite acessar algo mais interno, intuitivo”.

Ela descreveu a primeira obra de grande escala que produziu: uma peça de dois metros por um e cinquenta, resultado de um ano e três meses de trabalho.

“A obra surgiu do sentimento, não de uma imagem predefinida”, explica. Para Bia, o crochê é expressão artística e forma de inserir práticas manuais em pesquisa acadêmica e criação visual.

Sofia Matos, a caçula do grupo, 19 anos, estudante de Publicidade e Propaganda, representa a nova geração. 

Começou a produzir bolsas em 2024 como válvula de escape da ansiedade antes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

“Sempre admirei minha mãe, que me ensinou. O crochê me trouxe orgulho e uma forma de organizar o dia”, explica. Sobre o encontro, disse: “Foi ótimo estar rodeada dessas mulheres, observando suas experiências e técnicas. Me senti motivada a evoluir”.

Theo Felipe, 23 anos, não esteve presente nas fotos, mas contribuiu com relatos sobre seu aprendizado via YouTube. “O crochê me ensinou paciência. Antes, eu era impaciente e estressado. Hoje, consigo focar, relaxar e me conectar com memórias da minha avó”, comenta.

Crochê e bordado são elo entre gerações 

O encontro permitiu observar a troca entre gerações: as mais experientes acolheram as mais novas, compartilhando estratégias, erros e acertos, e explicando sobre fios, texturas e durabilidade das peças.

Maria ressaltou a importância da técnica tradicional. “Ela garante que a peça dure, suporte lavagem e uso cotidiano. Hoje, existem trabalhos decorativos, mas nem sempre são resistentes”.

Bia acrescentou que a prática é atemporal: “O crochê se renova, passa de geração em geração, e cada pessoa imprime seu estilo”.

A Rede Estrela, da qual Maria, Marlem e Ana Cristina fazem parte, mostra como a prática manual transcende a técnica e cria espaços de convivência e suporte. As reuniões semanais acolhem mulheres que, além de aprender crochê, buscam socialização e apoio emocional. “Tem mulheres que só vêm para estar com outras pessoas. O crochê é a desculpa para sair de casa e conviver”, explicou Maria.

Viés da arte no mercado

O encontro também revelou diferentes perspectivas sobre o valor do artesanato. Teresa comentou sobre a entrada no mercado artístico: “Quem entra pelo viés da arte consegue cobrar pelo tempo investido. Tempo é luxo e moeda hoje. Há quem venda peças decorativas por valores baixos, mas também há artistas que precificam alto pelo conceito e pela técnica”.

Entre todas, houve consenso de que a prática manual exige concentração e disciplina, mas permite liberdade criativa. O crochê e o bordado, embora distintos, compartilham a necessidade de atenção e paciência.

Sofia observou: “Aprendi sobre a diversidade de técnicas e fiquei impressionada com a rapidez de produção de algumas peças. É um aprendizado que vou levar para a vida”.

O primeiro tema do encontro foi justamente o que une todas elas: crochê e bordado. O diálogo manteve-se focado em como aprendem, desenvolvem, corrigem erros e compartilham técnicas, enquanto eu apenas observava.

As falas alternavam entre lembranças de infância, experiências com professores e familiares, e reflexões sobre processos criativos. A interação era natural, com olhos atentos e brilho nos rostos das mais jovens, absorvendo o conhecimento das mais experientes.

O encontro na Casa Vida&Arte foi, acima de tudo, um registro vivo da transmissão de saberes manuais. Demonstrou que o crochê, o bordado e o trabalho com linho são práticas que combinam tradição, arte e inovação, ligando diferentes gerações.

Entre risos, relatos de erros desmanchados e explicações detalhadas sobre técnicas, ficou evidente que cada ponto é mais que um gesto: é memória, aprendizado e conexão.

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