Os Donos do Jogo: Diretor revela bastidores da série da Netflix

Os Donos do Jogo: Diretor revela bastidores da série da Netflix

Diretor de "Os Donos do Jogo", da Netflix, Heitor Dhalia apresenta em entrevista ao O POVO o contexto de criação da obra e afirma que o Bicho é a "máfia brasileira"

Lançada na Netflix na última quarta-feira, 29, “Os Donos do Jogo” ocupa o topo do ranking de séries mais assistidas na plataforma no Brasil. A obra tem ganhado destaque por abordar, a partir da ficção, o universo do Jogo do Bicho.

Com criação de Heitor Dhalia ("DNA do Crime"), Bruno Passeri e Bernardo Barcellos, a produção reúne estrelas como André Lamoglia, Chico Diaz, Juliana Paes, Mel Maia e Xamã. O enredo apresenta disputas pelo comando do crime no ramo dos jogos de azar.

Em entrevista ao O POVO, o diretor Heitor Dhalia pontuou o contexto de criação da série, a escolha do elenco e como o Jogo do Bicho se tornou, em sua avaliação, a “máfia brasileira”.

O POVO - Qual foi o contexto de desenvolvimento da série? Por que o interesse em falar sobre o Jogo do Bicho?

Heitor Dhalia - Em 2022, estava no Rio de Janeiro filmando outra série. Comecei a pensar na segurança pública do Rio de Janeiro. Lembrei do Jogo do Bicho e fiquei curioso. Era na época em que estava tendo a discussão da legalização dos cassinos. Pensei: como está o universo do Jogo do Bicho hoje? Porque a nossa memória e a representação no audiovisual estão muito presas há 40 anos. Muitas pessoas se lembram da época da prisão da cúpula dos bicheiros antigos. Refleti sobre o cenário atualmente. Veio esse insight de fazer uma releitura desse universo a partir da discussão sobre a legalização do jogo e entender como estavam os atores desse universo hoje. Essa foi a ideia inicial.

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O POVO - O que veio depois?

Heitor Dhalia - Começamos uma pesquisa para entender o universo real e nos deparamos com as guerras de sucessão interna das famílias, que automaticamente geraram guerras entre territórios também. Porque, quando você começa a ruir uma estrutura de poder em uma família, abre espaço e vulnerabilidade para ataques ou disputas. Entendemos essa pesquisa e vimos que o tema estava muito atual e mais rico do que havíamos imaginado. Depois veio o processo de desenvolvimento. E, quando fomos para a produção, descobrimos mais coisas ainda, entendendo que esse universo havia passado por uma transformação radical. São outros agentes, outro dinheiro, toda uma nova geração, os “nepo-babies”. Compreendemos que esse universo estava com outra cara. Nossa ideia foi trazer essa história para a tela e atualizar o debate sobre um tema tão querido do audiovisual brasileiro — e do País mesmo.

O POVO - Interessante você ter mencionado as discussões sobre a legalização dos cassinos e como houve atualizações nos jogos de azar. Hoje, há discussões sobre as bets, e a série traz à tona esse assunto. Como foi o processo de pesquisa para apresentar essas discussões para também incluir as bets e o envolvimento do poder político?

Heitor - A primeira coisa que fazemos ao entrar em um novo universo é uma pesquisa ampla — teórica, com livros, jornalismo, material do audiovisual… Em um segundo momento, falamos com consultores, pessoas que têm ligação com esse universo, seja do crime, da contravenção ou da polícia, do combate. A primeira transformação do Jogo do Bicho aconteceu lá atrás, com a chegada das maquininhas no Brasil. Antigamente, o Jogo do Bicho era só escrito. É uma grande história, aliás, ainda não contada: a chegada das maquininhas no Brasil. Foi uma loucura. Elas vieram por acaso: era coisa de fliperama, pessoas que importavam do Japão, e começaram a trazer.

O POVO - Como foi esse impacto da chegada das maquininhas? 

Heitor - Em certa hora alguém falou: “Espera, isso é jogo (de azar), não é?”. No começo, a cúpula do Bicho não tomou as maquininhas, porque acharam que não era importante, era bobagem. Quando viram que estava dando uma fortuna, falaram: “Isso aqui é da gente também. Tudo que é jogo é nosso”, porque o Jogo do Bicho é, digamos, um guarda-chuva que engloba todas as apostas de azar. Então, sempre é esse ciclo: legaliza, depois proíbe, e assim vai, a partir dos impactos que causa na sociedade. Começamos a entender isso conversando com pessoas reais que participaram dessas histórias. O que estava acontecendo nesse universo? Como são os lucros, como as coisas de fato acontecem?

O POVO - E qual foi o próximo passo?

Heitor - Chegamos, obviamente, às bets. Em princípio, também como as maquininhas, foi algo que chegou despercebido — ou nem tanto, porque eram empresas internacionais. Causou um imenso prejuízo ao Jogo do Bicho. Perderam faturamento no Bicho escrito, nas máquinas, e depois começaram a se movimentar em direção a essa atualização que são as bets. Tudo isso foi aparecendo na pesquisa. Quando conversávamos com pessoas e líamos materiais, fomos entendendo completamente esse universo — primeiro na fase de roteiro, depois na fase de produção. Quando você mergulha, começa a receber muita informação dele, de todo lado. Você se depara com uma coisa, com outra, e vai construindo seu quebra-cabeça, entendendo melhor as engrenagens por trás desse negócio. Foi isso que a gente foi fazendo. Só que esse ponto de partida real foi apenas a base para construirmos o nosso universo, com as nossas famílias. É uma história de ficção. Ela se baseia em um universo real, mas não conta nenhuma história real. Nenhum personagem da série existe. Criamos nossas famílias: a família Moraes, com o Profeta em sua coroação e ascensão; a família Guerra, na disputa sucessória interna entre as irmãs; e a família Fernandes, que representa a cúpula mais tradicional, trazendo um pouco da velha guarda do Bicho. Construímos, a partir das informações e das pesquisas, um mundo ficcional próprio tentando desvendar com as liberdades que a ficção oferece.

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O POVO - Você abordou o tópico das maquininhas e me fez perceber como a identidade visual é construída, com trabalho dedicado de ambientação de cenário. Como foi fazer a caracterização desse mundo, que faz alusão ao Jogo do Bicho, mas tem uma personalidade própria?

Heitor - Além da atualização do Jogo do Bicho, outro elemento que tentamos trazer foi situar a série no gênero máfia. Não é uma invenção minha. Esse namoro do Jogo do Bicho com as referências de máfia existe desde os anos 1980. Eles têm fascínio pelo “O Poderoso Chefão”, pelo Don Corleone. Agentes de segurança me falaram: “É a nossa máfia. O Jogo do Bicho é a máfia brasileira”. Se eles próprios têm esse fascínio com a máfia italiana, falei: "Então vamos situar essa história no gênero máfia”. Buscamos essa caracterização de gênero. A partir desse código, pensamos em uma “máfia tropical”, uma “máfia carioca”, com ligações com o Carnaval, e elaboramos o universo visual disso. Fomos atrás de elementos exuberantes, da riqueza, nas plantas, na arquitetura também, tentando situar os lugares. Fizemos grande pesquisa de campo para nossa história ficcional. Foi bastante intencional essa construção nos figurinos, nas cores das locações, nesse Rio de Janeiro exuberante. O Rio é quase indecente de tão bonito. Tentamos trazer esse luxo, o exótico, nas texturas, no verde, para construir cada família com referências de impérios, como se fossem realmente reinos ou dinastias. Tivemos a ideia de fazer disputas de trono “shakesperianas”, com reis, príncipes e herdeiros. Foi esse caminho de construção visual que chegamos a partir de uma série de decisões que a dramaturgia nos apontava.

 

O POVO - Como foi o processo de escolha do elenco?

Heitor - Foi bastante cuidadoso e longo. Tínhamos uma ideia do que queríamos. A primeira coisa era um elenco carismático, porque os personagens são muito carismáticos, e vêm do próprio universo do Jogo do Bicho. São pessoas com carisma, exuberantes, com esse pé no popular, mas ao mesmo tempo teríamos que apresentar uma nova geração. Para cada personagem buscamos um ator que tivesse essas características e uma aura genuinamente carioca. Tem gente que é da Barra da Tijuca, veio da Zona Norte, do Centro… Evitamos uma leitura de Zona Sul. Contratamos pessoas que tivessem um “suco do Rio de Janeiro”, carioca da gema, com um olhar mais periférico na medida do possível e tivesse a ver com a história. Juliana Paes, por exemplo, é de Campos dos Goytacazes e já foi rainha de bateria de escola de samba. A Mel Maia, que é do centro do Rio, também tem vivência carioca muito forte. Isso foi dando uma verdade para o elenco.

O POVO - O que achou de trabalhar com esse elenco?

Heitor - Dei a sorte de, além de serem bons atores, serem artistas muito comprometidos. Todos enxergaram no projeto uma grande oportunidade para si. Todos entenderam terem grandes personagens para defender e mergulharam fortemente no processo de preparação. O André Lamoglia carrega o peso do Profeta nas costas, foi super delicado. Chico Diaz um gênio. Juliana Paes sobrou no papel da Leila, se encaixou perfeitamente. O Otávio Müller fazendo Xavier tem um papel incrível e emocionante no final. Fomos abençoados com essas escolhas e tivemos muitas recompensas na produção da série. Os atores entregaram muito, estão muito bem encaixados. Fizemos escolhas muito grandes e arriscadas em todas as áreas estéticas, e temos a sorte de terem aterrizado muito bem. Estamos confiantes que a série vai ter impacto e gerar interesse na audiência.

O POVO - Quanto aos personagens, vemos estilos bem destacados. O Búfalo tem uma postura mais dominadora, de agir pela violência, enquanto o Profeta busca o lado estratégico. É semelhante com o Galego e com a Leila. O que pode nos dizer sobre a construção desses perfis?

Heitor - Sempre começamos qualquer trabalho a partir da construção do personagem, porque há essa ligação entre o plot (história) e o personagem. Há pessoas que defendem, inclusive, que a história é o personagem. Como as séries precisam carregar várias temporadas, o personagem é central mais até do que a história, o que leva você de uma temporada para outra é o personagem. A partir das nossas pesquisas, decidimos trazer um forasteiro para o enredo. Tem uma disputa familiar, um casamento morno, um plano de fundo de traição, então olhamos essas histórias que estavam no mundo e colocamos em um caldeirão. Assim foram surgindo os nossos personagens a partir dos núcleos familiares com suas questões. Só que são mafiosos, é daí que vem a graça. Duas irmãs que não se gostam. Um jovem ambicioso, forasteiro, que quer subir na carreira, mas a empresa dele é o Jogo do Bicho. Há casamento desgastado entre Leila e Galego, mas é uma disputa de território entre rei e dama. Fomos construindo cada personagem a partir dos temas que queríamos abordar, como a discussão das mulheres no ambiente masculino, um casal homoafetivo nesse universo. Então “contrabandeamos” assuntos de interesse geral nesse gênero. Uma coisa que o diretor Martin Scorsese fala muito sobre filmes de crime é que é um gênero que todo mundo gosta e você pode contrabandear o assunto humano que quiser dentro deles. É um pouco do que tentamos fazer aqui.

O POVO - Essa não é a primeira série para a Netflix que você dirige que aborda o crime, você dirigiu "DNA do Crime". Houve semelhanças no processo de condução entre as duas séries? Quais foram os aprendizados?

Heitor - Tenho feito séries de ação seguidas e todas deram muito certo. A semelhança é o nosso mergulho no mundo real, em conhecer os protagonistas da história, a pesquisa, os consultores, o aprofundamento da realidade… Nossa pesquisa é profunda, temos muitos consultores. Isso já dá uma verossimilhança muito grande. Quase “pedimos licença”, porque vamos falar do assunto, mas respeitando seus protagonistas, tentando compreender os códigos e fazer algo que não seja clichê. Em “Os Donos do Jogo”, inauguramos o gênero de máfia na Netflix Brasil. O “DNA do Crime” é diferente, é uma série de ação, de fronteira, na qual tratamos dos assaltos a banco e domínios de cidade. Falamos um pouco de tráfico internacional, da ligação com os assaltos, a fronteira marítima que é o Porto de Santos e esse narcotráfico sul-americano, então o “DNA” tem outro recorte. Apesar de ter cenas de ação, “Os Donos do Jogo” é uma série mais com característica de máfia, na qual as ações são pontuais, com consequências específicas. Nos baseamos mais em relações familiares. Então, há mais de melodrama, de disputa familiar. É uma natureza diferente. Há similaridade em um aspecto, pois tratam do universo do crime, mas são lugares muito distantes um do outro.

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