"Nem maldito, nem tropicalista": relembre entrevista com Jards Macalé
Conhecido como o Anjo Torto da MPB, o carioca Jards Macalé morreu nesta segunda-feira, 17, em decorrência de uma parada cardíaca
“Se chamavam a gente de ‘maldito’, na verdade, estavam chamando os outros de caretas”, afirmou Jards Macalé ao ser questionado sobre o que pensava a respeito do apelido que lhe foi concedido pelo mercado fonográfico brasileiro.
O termo “a gente” incluía também nomes como Jorge Mautner, Sérgio Sampaio, Luiz Melodia, Tom Zé, músicos que fugiam do padrão de produção do momento.
Nascido em 3 de março de 1943, no Rio de Janeiro, Jards Macalé iniciou sua trajetória artística na década de 1960 ao se apresentar em casas de shows da região, tendo suas composições gravadas por nomes como Gal Costa.
Sua projeção nacional foi alcançada ao participar do show “Opinião”, ao lado de Maria Bethânia. Jards também assinou as guitarras e arranjos do inconfundível "Transa" (1972), de Caetano Veloso. Apesar da relação e do trabalho construídos, recusou durante toda a vida o rótulo de tropicalista.
Essas e outras declarações foram concedidas em entrevista às Páginas Azuis do O POVO, publicada em 13 de janeiro de 2014.
À época, aos 71 anos, o músico recebeu O POVO no quarto do hotel onde estava hospedado em Fortaleza, durante sua participação no Festival Internacional de Biografias (FIB).
O encontro aconteceu horas antes de sua apresentação com Jorge Mautner na Praia de Iracema.
Durante a entrevista, que durou 50 minutos, Jards permaneceu com o cigarro à mão. “Fumo muito, mas minha memória é ótima, viu?”, brincou o artista.
Nesta segunda-feira, 17, o cantor e compositor morreu aos 82 anos, em decorrência de uma parada cardíaca.
De acordo com a equipe do artista fluminense, Jards estava internado em um hospital na capital carioca devido a um enfisema pulmonar.
Relembre a seguir falas memoráveis e as principais reflexões do "Anjo Torto" da Música Popular Brasileira.
Bom na música e ruim de bola: o começo na música
Na ocasião, Jards Macalé contou que sempre foi “ruim de bola” e que, apesar de ter uma coleção de bolas em casa e insistir em jogar sozinho, não conseguiu se aprimorar no esporte.
Foi daí que veio seu apelido, “Macalé”, nome do ex-jogador do Botafogo, lembrado como “perna de pau”.
“Mas, na música... aí eu jogo bem”, disse ele. O interesse pela música surgiu ainda na adolescência, quando tinha uma vizinha que estudava violão nos fundos da casa onde morava.
Eles eram vizinhos porta a porta, e Jards espiava as aulas pela fresta da porta semiaberta. Quando a vizinha terminava, ele pedia o violão emprestado para tentar reproduzir o que havia visto. Assim começou a tocar, aos 15 anos.
No decorrer da carreira, lançou inúmeros álbuns, como "Aprender a Nadar" (1974), "Contrastes" (1977), "O Que Faço é Música" (1999), "Macao" (2008), "Besta Fera" (2019) e "Coração Bifurcado" (2023).
Relacionamento com Ana Miranda
Jards Macalé e a escritora cearense Ana Miranda tiveram um relacionamento amoroso que durou cerca de seis anos, no final dos anos 1970.
Um dos registros mais emblemáticos dessa parceria é a capa do álbum "Contrastes" (1977), em que o músico aparece aos beijos com Ana Miranda. Essa imagem se tornou um ícone da fase, mas foi retirada da reedição do disco.
Sobre o ocorrido, em entrevista ao O POVO, em 2014, Jards afirmou:
“Não há questão legal alguma, é piração da Ana Miranda, que é cearense. E é assim: as mulheres cearenses são maravilhosas. São implicantes, cabeça dura, mas são maravilhosas. Nós tivemos uma relação muito profunda durante uns seis anos. A separação foi dura, foi difícil, e eu tinha gravado esse disco em 1977, quando nós começamos a namorar".
“Na reedição, ela não queria que aparecesse aquela foto maravilhosa na capa, daquele beijo. Respeitando a ela, nós botamos fogo nela na capa. Mas foi uma faca de dois gumes. Na hora que o disco foi lançado com a capa sem a presença dela, todo mundo queria a capa original. Por respeito, cortou-se, mas a capa original é linda”, disse.
“A essa altura, a esquerda é de direita”, disse Jards
Em uma entrevista à revista Veja, em 1979, o carioca afirmou que “a essa altura, a esquerda é de direita”, declaração que, segundo ele, o levou a um exílio informal dentro do Brasil, onde ficou anos sem poder gravar.
Nas Páginas Azuis, o músico retomou a fala e, apesar da repercussão negativa que a declaração lhe trouxe, reafirmou que, naquele momento, “direita e esquerda já não têm muito sentido”.
Ao explicar o contexto, Macalé recordou que, em 1974, durante o governo Médici, no auge da Ditadura Militar, o seu álbum "Banquete dos Mendigos" foi proibido e permaneceu censurado por cinco anos.
Posteriormente, no governo Geisel, o disco foi liberado, e ele decidiu levá-lo ao Palácio do Planalto para entregá-lo ao então ministro-chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, que, segundo ele, articulava uma abertura política lenta, gradual e segura.
Para Macalé, essa atitude foi interpretada por alguns como um ato de colaboração com os militares, gerando críticas por parte daqueles que questionavam como ele poderia dialogar com o regime.
“Na época, as pessoas começaram a fazer aquela fofoca nacional. A direita achava que eu estava invadindo a seara dela, a esquerda achava que eu estava me entregando. Então eu disse aquilo. O que me valeu 11 anos de ostracismo no Brasil”, relembrou ao O POVO.
Despedida dos palcos
Uma das últimas aparições de Macalé nos palcos foi no fim de setembro de 2025, no festival carioca Doce Maravilha. O músico levou o público à emoção ao apresentar as canções de seu disco homônimo de 1972.
Já em Fortaleza, sua última passagem foi no ano de 2019, quando se apresentou durante a programação do Palco Vida & Arte, realizada no Anfiteatro do Parque do Cocó.
Ao O POVO, o músico declarou: “Sou reconhecido pelo que eu sempre fui: músico”.
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