‘Borda’: entre limites e transbordamentos na obra de Lia Rodrigues

‘Borda’: entre limites e transbordamentos na obra de Lia Rodrigues

A estreia da mais recente criação de Lia Rodrigues, "Borda", acontecerá em Fortaleza, na sexta-feira, 24, abrindo a XV Bienal Internacional de Dança do Ceará. Leia análise da professora Rosa Primo
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Texto de Rosa Primo*

A estreia nacional da mais recente criação de Lia Rodrigues, ”Borda”, acontecerá em Fortaleza, na sexta-feira, 24, abrindo a XV Bienal Internacional de Dança do Ceará.

Depois de sua primeira apresentação no Kunstenfestivaldesarts, em Bruxelas, e de circular por diversas cidades europeias ao longo do ano, o espetáculo chega ao Brasil afirmando-se como um dos momentos centrais da Bienal. Em cena, Lia tensiona as fronteiras entre arte, política e experiência sensível, fazendo da dança um espaço onde margem e centro se desdobram em gestos simultâneos.

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A obra instaura um território liminar: um espaço que se constrói no atrito entre fronteira e travessia, entre dor e alegria, entre silêncio e exuberância. A palavra “borda” em português traz consigo uma polissemia rica — borda é margem, limite, aresta, mas também costura, passagem, orla que une e separa. É nesse entremeio que a peça se inscreve: não como ilustração de um tema, mas como experiência de deslocamento perceptivo.

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A força visual da cena é marcada por duas atmosferas contrastantes. De um lado, uma massa branca de tecidos, em movimento extremamente lento, mostra-se em corpos que murmuram ao longe, como imagens fragmentárias de um único organismo em sofrimento.

De outro, a entrada súbita de um plástico negro desdobrando-se em um Carnaval de cores, lantejoulas, saltos, risadas. Essa polaridade nos coloca diante das tensões geopolíticas do mundo contemporâneo — imigrantes e refugiados, dor coletiva, exclusão — contrapostas a gestos de festa, resistência e reinvenção.

Contudo, mais do que uma alegoria, "Borda" nos insere em um campo de sensações, fazendo mover dicotomias que não se resolvem, mas se contaminam – ou ainda, dicotomias que não buscam resolver nada senão por contaminação.

Os elementos de "Borda"

Outro elemento forte visualmente é o silêncio, que se alarga parecendo habitar vastidões de terra. A ausência de música abre espaço para uma duração dilatada, no qual a atenção se intensifica e pequenas variações adquirem espessura perceptiva.

Esse ritmo não se estrutura em contrastes fixos, agencia-se entre pares opostos — resultando numa experiência paradoxal, na qual os contrários se articulam não como exclusões, mas como presenças que coexistem.

Criar e resistir – desde a favela da Maré, no Rio de Janeiro, onde a coreógrafa estabeleceu o Centro de Artes da Maré – constitui o gesto que atravessa a poética de Lia. Ao levar para a cena europeia imagens produzidas a partir dessa experiência periférica, Rodrigues desloca os centros da criação contemporânea, fazendo da borda um lugar de enunciação. A borda, portanto, não é clausura; é porosidade, composição. Esse espaço permeável, como ponto de tensão, não descarta a margem.

O que escapa do centro é território de invenção em Lia Rodrigues, dando a ver no interstício, limiar onde a vida insiste em se reinventar, a emergência de formas culturais híbridas capazes de desafiar hegemonias.

Nesse sentido, "Borda" mostra-se no espaço do trágico e do carnavalesco, da política e da poética, do real e do imaginário. Ao mobilizar tecidos, plásticos e figurinos reciclados, Lia Rodrigues constrói uma espécie de dramaturgia da precariedade, compondo corpos e resíduos como arquivos sensíveis, capazes de produzir novas imagens a partir do ordinário.

Gestos desafiam formas tradicionais, coreografias expõem vulnerabilidades e excessos, a nudez desestabiliza expectativas morais. Tudo isso constrói um território que faz do corpo dançante espaço de ressignificações.

Ao final, o que se retém não é a narrativa de fronteiras atravessadas, mas a experiência de um tempo suspenso, de um corpo coletivo que se faz e desfaz, de imagens que se oferecem e se retiram. "Borda" não responde à pergunta “quem tem o direito de existir”, mas encena, no presente, a urgência desse direito.

*Rosa Primo é bailarina, coreógrafa, jornalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes e dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora e mestre em Sociologia pela UFC, realizou estágio doutoral no Curso de Dança da Université Paris VIII (França). Lidera o grupo de pesquisa Dança, Infância e Autismo (DIA/CNPq). Autora do livro "A dança possível: as ligações do corpo numa cena". Iniciou seus estudos em Fortaleza e construiu trajetória artística entre Ceará e São Paulo, atuando como bailarina, atriz, crítica e gestora cultural. Desde 2014, desenvolve pesquisas cênicas em formato solo, com destaque para "Encanta o meu jardim", "Iracema" e "Tudo passa sobre a terra", obras que articulam corpo, memória, questões sociais e poéticas contemporâneas.

**A análise foi publicada a partir de parceria entre o Vida&Arte e a Bienal Internacional de Dança do Ceará. Nos próximos dias, outros textos serão publicados.

XV Bienal Internacional de Dança do Ceará

  • Quando: sexta-feira, 24, a sábado, 1º de novembro
  • Onde: Fortaleza, Paracuru, Trairi, Baturité, Guaramiranga, Itapipoca, Pacatuba e Pacajus
  • Programação completa: bienaldedanca.com

Programação de abertura

Fortaleza

  • 20 horas - Cerimônia oficial de abertura, com homenagem a Elisabete Jaguaribe e Henrique Rodovalho
    Onde: Theatro José de Alencar (rua Liberato Barroso, 625 - Centro)
  • 20 horas - Início da festa de abertura, com DJ Guga de Castro
    Onde: Estação das Artes (rua Dr. João Moreira, 540 - Centro)
  • 20h30min - "Borda", Lia Rodrigues Cia de Danças (RJ)
    Onde: Theatro José de Alencar
  • 21h30min: Show de abertura da Bienal com Saulo Duarte
    Onde: Estação das Artes
  • 22h30min - Show de abertura da Bienal com Mateus Fazeno Rock - “Lá Na Zárea Todos Querem Viver Bem”
    Onde: Estação das Artes

Paracuru

  • 19 horas - Cerimônia oficial de abertura da XV Bienal Internacional de Dança do Ceará
    Onde: Praça da Matriz
  • 19h30min - Percurso de Criação - “Nosso Baile”, Henrique Rodovalho - Criação Bienal Internacional de Dança do Ceará (Brasil/França)
    Onde: Praça da Matriz
  • 20h30min - “O que você tem na cabeça?” - Jorge Garcia e Escola de Dança de Paracuru (CE)
    Onde: Praça da Matriz
  • 21h30min - "Lagarto do Mar" - Ana Bottosso e Escola de Dança de Paracuru
    Onde: Praça da Matriz

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