Área de litígio: metade no Ceará, metade no Piauí, casa fica bem na divisa e é símbolo da disputa

No Ceará, moradores de uma comunidade se divertem com a história de uma casa dividida ao meio, parte no estado, parte no Piauí

Naquele mundo de chão a perder de vista, a história se espalhou ligeiro. Na casa de dona Liduína, não se sabia ao certo onde terminava o Ceará e onde começava o Piauí. Não é que a moradora não aprendera geografia, se apressaram em explicar, mas que a dúvida era de outra natureza.

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Construída na área de divisa, a edificação delimitava o fim de Serra Nova, distrito de Carnaubal vizinho a Pedro II, município já em solo piauiense. O imóvel, conforme relatos, fora erguido em cima da linha, parte lá e parte cá, representando mais que qualquer outro o impasse territorial em torno do qual os dois estados duelam na Justiça desde 2011, quando o Piauí entrou com ação no STF.

Sentado na varanda numa tarde de dezembro, trajando camisa azul e usando um chapéu preto de aba, Manuel Vieira, 80, assente, balançando a cabeça: a residência de Liduína era um mistério cuja solução ninguém tinha, nem mesmo ele, que sabia de cor e salteado o mapa inteirinho da cidade, do Carnaubal até Pedro II e Guaraciaba do Norte, passando por Ipueiras e Croatá.

Seu Manuel afiança, no entanto: não era conversa inventada. “Diz que a sala é no Carnaubal e a cozinha é em Pedro II”, narra o agricultor, o olhar espichado para a árvore frondosa que se encompridava na frente do terreiro, como se refletisse sobre o significado dessa indeterminação.

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Na casa de seu Odilon, por sua vez, nada sobre o causo da casa dividida. De sobrenome Pereira da Silva, o nonagenário diz que conhece a história, mas acha difícil que se encontre alguém que possa arbitrar o conflito. Àquela altura, a única coisa de que tinha certeza era de que tudo ali era Carnaubal, sem sombra de hesitação.

“É tudo do Ceará”, responde, acrescentando que cansou de ir até o Piauí quando mais jovem, sem que jamais tenha lhe ocorrido que aquele pedaço, onde a casa de Liduína se mantivera até hoje, era da posse do estado.

“Eu conheço tudo aqui. O Piauí está interessado porque querem crescer a custo dos outros, muitos políticos são assim. Conheço tudo que é cidade. Aqui nunca foi de Piauí”, aporrinhou-se.

Mas, afinal, a casa se situava em terra cearense ou na do estado vizinho? Talvez a própria Liduína soubesse, mas Liduína não estava, logo descobriríamos. Tinha saído no dia anterior em visita a uma filha que morava em cidade próxima, sem previsão de retorno.

Como não soubéssemos ainda, era o jeito esticar os passos até a casa. A alguns metros da cerca de madeira, porém, os cachorros partiram em carreira desabalada. Avançavam contra a equipe do O POVO, mas, ao chegarem bem perto, amansaram e passaram a abanar o rabo, dóceis e brincalhões.

Vencida a patrulha canina, batemos palma por cerca de cinco minutos. Ninguém apareceu. Então espiamos o quintal, onde uma carcaça da cabeça de boi estava pendurada em uma estaca. Como já tinha visto uma e, até o fim da viagem, outras mais apareceriam, não estranhei.

De volta ao povoado, fui ter com Claudenilson Magalhães Vieira, 52, agricultor em Carnaubal e muito atento às questões da terra. Ora, ele também conhecia a história da casa dividida, mas não podia ajudar, apenas a proprietária.

De concreto, disse somente o que todos já tinham falado, um mantra na região: “Prefiro ficar aqui no Ceará mesmo”. Anotei a frase, mas o pensamento estava na divisa trespassando o imóvel, a possibilidade de morar em dois estados ao mesmo tempo, de habitar os dois mundos e dar de ombros para o litígio.

Por indicação, consultei dona Maria de Lourdes Magalhães Vieira, 80 anos, moradora de Carnaubal, mas filha do São Benedito. Ao vê-la, confiei que saberia dissolver o mistério. Contudo, em vez de resolver a charada, me contou como conhecera o marido, mais de cinco décadas atrás.

“Eu tava na varanda de casa, era moça. Ele tinha um cunhado que lutava com gado, e aí apareceu lá mais ele. Era bonitão”, resumiu às gargalhadas, dizendo em seguida que ganharam o mundo a cavalo. “Logo a gente casou”, complementou. Foram quase 60 anos de união – o marido faleceu em 2021.

Da casa mesmo, dona Lourdes limitou-se a repetir o que já haviam dito: era verdade, mas falasse com Liduína, meu filho.

Deixamos Serra Nova já na boca da noite, o entardecer de dezembro alaranjando o céu, coalhado de nuvens salpicadas da mesma coloração. Paramos para fazer umas fotos num alto do caminho. Um pássaro atravessou o céu, numa cena de beleza que só o interior cearense consegue legar.

Anotei o telefone da reportagem num papel e entreguei a um dos moradores, mas dona Liduína ainda não deu retorno para confirmar ou negar que sua casa se encontra exatamente no meio da arenga jurídica entre Ceará e Piauí.

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