Canção revela identidade de Belchior a partir do feminino
"Bela", de Belchior, revela a identidade do artista a partir da fusão entre ele e uma personagem feminina
A canção "Bela", lançada por Belchior no álbum "Paraíso" (1982), transcende a moldura da canção romântica e se afirma como uma das obras mais complexas e simbólicas do compositor cearense.
Longe de um simples tributo amoroso, ela é uma declaração filosófica e poética à mulher amada — elevada à condição de fortaleza existencial, musa literária e matriz da identidade do próprio artista.
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Belchior, conhecido por sua escrita intertextual e pela constante autorreflexão sobre a arte e o ofício de compor, faz de "Bela" um espelho de sua própria construção poética.
A canção é, ao mesmo tempo, confissão íntima e manifesto estético. Nela, o compositor articula amor, literatura e filosofia, reafirmando a mulher como centro irradiador de sua criação e resistência.
O título Bela não é uma escolha fortuita. Ele ecoa diretamente o apelido do artista — Bel —, como era chamado por amigos e colegas. Ao nomear a canção com uma variação de seu próprio nome, Belchior realiza um gesto metadiscursivo: funde a imagem da amada à sua própria identidade. A mulher, portanto, torna-se extensão de seu “eu” artístico, símbolo e espelho de sua própria essência
criadora.
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Essa fusão aparece também nos versos em que a mulher é descrita em todas as suas dimensões: “Minha (a)ventura, minha bem-aventurança / Minha mãe, minha irmã, minha mulher, minha criança / Raiz do meu cantar, matriz da minha contradança.” A acumulação de papéis revela a amada como origem de tudo — mãe, amante, inspiração e destino.
É ela quem sustenta o cantor e sua poética, sendo “sensibilidade de Fortaleza à luz do dia”, capaz de abrigar os opostos e sintetizar o caos do mundo: “Inferno e paraíso é ela”.
Literatura na obra de Belchior
A literatura sempre ocupou papel central na obra de Belchior, e "Bela" é um dos exemplos mais nítidos dessa vocação. O compositor, leitor voraz e apaixonado pela palavra, constrói sua canção como se fosse um poema moderno, incorporando referências à vanguarda concretista que marcou a poesia brasileira dos anos 1950.
Nos versos “Bela como a luz elétrica / Mensagem pura / Como as letras do alfabeto / Estas estrelas / Como poema concreto”, Belchior aproxima a figura feminina da própria linguagem. A mulher é simultaneamente corpo e texto, signo e sentido, forma e conteúdo.
Ao invocar o “poema concreto”, ele remete ao trabalho dos poetas do grupo Noigandres — Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos —, que transformaram o espaço gráfico da página em parte essencial do significado.
Belchior traduz essa estética para o universo da canção, criando uma poesia sonora em que a palavra se faz imagem e ritmo.
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A dimensão metalinguística se amplia quando o artista define a amada como “o avesso do verso: o processo / a prosa; o trabalho em progresso”. Aqui, o elogio vai além da beleza: ele exalta o movimento, o inacabado, a construção contínua da arte e da vida. A mulher não é o verso pronto, mas o processo — a criação em curso, viva e imprevisível.
Belchior nunca escreveu isolado. Sua obra é atravessada por um diálogo constante com outros artistas e tradições culturais. Em "Bela", esse diálogo se manifesta explicitamente no verso “Bárbara Beatriz é ela”.
Trata-se de um gesto intertextual e provocador: o compositor incorpora musas de Chico Buarque — "Bárbara", da parceria com Ruy Guerra (1973), e "Beatriz", composta com Edu Lobo (1982) — para fundi-las em uma única figura.
Ao fazer isso, Belchior não apenas presta homenagem ao colega, mas também afirma a singularidade de sua própria musa. É como se dissesse: a mulher que canta é todas as mulheres e, ainda assim, é só dela — única, total e síntese de todas as inspirações.
Essa operação revela o modo como Belchior constrói sua poética: por negociação, contraste e absorção. Se em canções anteriores ele se opunha aos discursos dominantes da MPB — como em "A Palo Seco" (1974) e Alucinação (1976) —, aqui ele dialoga e se reconcilia, reafirmando sua presença no panorama cultural brasileiro a partir da fusão entre amor, linguagem e filosofia.
No conjunto de sua obra, "Bela" representa a síntese madura de um pensamento artístico que sempre oscilou entre o social e o metafísico, o real e o simbólico.
A mulher surge como “matriz da contradança”, origem do movimento criativo e do enfrentamento constante entre opostos que define a estética de Belchior. Nela se cruzam sonho e realidade, inferno e paraíso, razão e desejo.
Ela é, ao mesmo tempo, o poema e a fortaleza — o equilíbrio entre a sensibilidade e a resistência. Mais do que uma canção de amor, "Bela" é um autorretrato cifrado: nela, Belchior sela sua relação com a palavra, com a mulher e consigo mesmo.
A fusão entre “Bel” e “Bela” é também a fusão entre o homem e o mito, o poeta e sua musa, a linguagem e a vida. Assim, o compositor transforma o amor em ato estético e o afeto em filosofia — porque, em Belchior, amar é sempre um modo de pensar o mundo e de mudar as coisas.
Análise escrita por jornalista Josy Teixeira, pós-doutora em Letras e Música
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