Teatro dos Sentidos: público cego e enxergante imerge em montagem

Teatro dos Sentidos: público cego e enxergante imerge em peça; veja análise

Com a proposta de um teatro acessível, espetáculo de 25 anos do grupo Teatro dos Sentidos, "Feliz ano novo", convida o público cego e enxergante a assistir histórias de amor e família com os outros sentidos

Uma das minhas brincadeiras preferidas na infância era cobra-cega. Ter os olhos vendados era a parte mais desafiadora do jogo. Lembro da sensação de agonia de não poder perceber o espaço pela visão e, mesmo em desvantagem, precisar pegar os oponentes. Na peça “Feliz ano novo”, do grupo Teatro dos Sentidos, a proposta de assistir a uma peça de olhos vendados despertou essa memória, mas não foi nada parecido.

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Acompanhada do jornalista Carlos Viana e do professor de português Júlio César, duas pessoas com deficiência visual, os nossos papéis se inverteram logo no corredor, antes de entrar na sala de dança Hugo Bianchi, do Theatro José de Alencar. Formando uma fila, recebemos as vendas pretas antes mesmo de entrar no recinto onde aconteceria o espetáculo na tarde do sábado, 23 de agosto.

Com cegueira adquirida, a noção espacial de Carlos o levou a assumir a posição de guia, antes ocupada por mim, que estava “emprestando-lhes os olhos” até então, como disseram Carlos e Júlio. “Deixa eu ficar na frente”, disse Carlos, liderando o caminho e avisando antes de entrar na sala: “À tua esquerda, tem um batente”. Em uma posição um tanto vulnerável, fui até a cadeira segurando o braço do meu colega jornalista.

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Lembrando da cobra-cega, imaginei que ficaríamos eu e o meu incômodo assistindo à peça de mais de uma hora de duração. Depois que todos se acomodaram em seus assentos, os atores se certificaram de que cada pessoa estivesse confortável. Segurando minhas mãos, alguém perguntou se estava tudo bem, ao que respondi, em meio a um riso nervoso: “mais ou menos”. Carlos, sentado ao meu lado direito, riu, nada nervoso.

"Feliz ano novo" e o Teatro dos Sentidos

E então deu-se início à história de Gabriel, um adolescente apaixonado que recorre ao livro “Antologia Poética”, de Vinícius de Moraes, para obter respostas sobre os seus sentimentos. Nas páginas, ele acaba encontrando uma dedicatória misteriosa de uma tal “Dama do Mar” ao pai Roberto, viúvo e comandante da Marinha. A partir daí, por meio das memórias de Roberto, desenrola-se sua antiga história de amor de Carnaval.

Júlio César, pessoa com baixa visão, confessa ter sentido receio de que “Feliz ano novo” trouxesse uma abordagem capacitista, mas saiu da sala satisfeito com a peça e elogiou a construção da narrativa. Por ser professor de português do Estado, os poemas de Vinícius de Moraes e a história de amor lhe tocaram em um nível a mais.

A dramaturgia “Feliz ano novo” propõe uma experiência que aguça paladar, olfato e audição. Para além das falas, números musicais como “O Que É O Que É?”, de Gonzaguinha, formam imagens vívidas na imaginação. Qual não foi minha surpresa ao desvendar os olhos, no fim da peça, e ver os atores padronizados com uma camisa preta do Teatro dos Sentidos.

Enquanto a narrativa se desenvolvia, visualizei atores vestindo roupas coloridas nas cenas que traziam clima de festa - seja pela música dançante ou pelo confete jogado - um barco à beira-mar como cenário de um romance e a lua ao soar de Beethoven. A surpreendente sensação de imersão imagética lembra o que fazem os livros. Os sons – vozes, músicas e efeitos sonoros – adicionam camadas de conexão com o universo narrativo.

Teatro dos Sentidos: a experiência

A entrega de guloseimas e outros objetos ao longo da peça, outra ferramenta de imersão, acabou me distraindo da história em diversos momentos. Pipoca, biscoito, uma pequena taça de champanhe, uma rosa, um bombom e um doce que, palpitamos, era sabor mamão foram entregues em nossas mãos ao longo do espetáculo. Enquanto tentava desvendar o objeto em mãos, a história acontecia sem a minha atenção.

Mas não distraiu Júlio, que brincou que “é muito bom esses espetáculos que a gente come”. Se há algum ponto negativo para a experiência dele e de Carlos, é que o romance entre Roberto e a “Dama do Mar”, que os deixou emocionados, não tem exatamente um fim feliz. A expectativa deles era de que Gabriel, o filho do marinheiro, conseguisse unir o casal novamente.

Mais que um espetáculo, o Teatro dos Sentidos promove uma experiência para o seu público, seja cego ou  enxergante, colocando a acessibilidade não como uma ferramenta, mas como parte constituinte da narrativa. 

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