Cannes 2024: ‘Anora’ renova falência do sonho americano

Estrelado por Mikey Madison e novo filme do norte-americano Sean Baker, "Anora" é uma comédia que sabe mascarar muito bem sua tragédia

Sean Baker se tornou badalado no meio cinéfilo quando lançou “Tangerine” em 2015, história extrovertida de um grupo de garotas de programa que ele resolveu filmar com as lentes de um iPhone.

Primeiramente alardeado por conta disso, o diretor marcou a experiência daquele ano porque a estética mais arranhada da imagem tinha tudo a ver com o tom de sua história, olhando para um subúrbio que se mantinha elétrico no carinho e na confusão em plena noite de Réveillon.

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Na edição anterior em que participou de Cannes, Baker estreou “Red Rocket”, história de um ex-ator pornô que se viu decadente em meio a uma indústria que foi lhe expulsando à medida que foi ficando mais velho. A cena em que ele está fugindo pelado é a síntese de tudo: a comédia e a aflição de um cara que já não tem nada, mas insiste no sonho sem substância que a poderosa América do entretenimento lhe deu.

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O olhar tragicômico para essas margens dos EUA volta em altíssima voltagem com “Anora”, forte candidato à Palma de Ouro ou aos prêmios de Direção e Atriz. A trama apresenta Ani, uma dançarina profissional que vê sua vida virada de cabeça para baixo quando um cliente russo se apaixona por ela e paga pela exclusividade, tirando-a da vida noturna para dedicar-se ao seu desejo. A ideia é um grande sonho porque o garoto é filho de um magnata e nada em dinheiro, podendo oferecer para ela quase que absolutamente tudo. Ela, claro, embarca. O sonho, claro, desmorona.

"Anora" se torna refém de um caos irreversível

O filme causou reações explosivas da plateia porque ele mergulha numa odisseia de festas, viagens e muito sexo, contando com o humor de que o jovem é um bilionário alheio à realidade e age como um adolescente que transa muito rápido, como se emulasse um vídeo pornô, e tem ódio quando sua partida de videogame é atrapalhada.

Mesmo sendo bem mais madura e não sentindo o mesmo prazer sexual que ele, Ani nunca reclama dessa configuração porque, por enquanto, ela está ali principalmente pelo negócio. Então o filme engata a marcha e não consegue mais desacelerar, entrando numa espiral de tesão e adrenalina, tornando-se refém de um caos irreversível.

Há quem tenha se incomodado muito com a demora que o filme tem para acabar, escondendo a revelação final até que ela seja óbvia demais. Mas é exatamente neste momento em que as margens na qual ela vive perdem toda sua camuflagem, quando Ani alcança o limite dessa ficção, que o “sonho americano” lhe alimenta sobre uma liberdade de ascensão social. É quando a comédia vira tragédia e, de repente, nos abandona.

Guinada em direção a Hollywood?

O que acho que impede sua Palma de Ouro, contraditoriamente, é certa obviedade que seria ela ser entregue por Greta Gerwig, presidente do júri, porque ela e Baker vem de uma esfera parecida do chamado “cinema indie” americano com tramas urbanas de baixo orçamento.

Por outro lado, só confirmaria uma guinada que a maior premiação da França vem dando cada vez mais neste século em direção a Hollywood – depois de lançar “Parasita” direto para o Oscar de Melhor Filme, já tem celebrado as carreiras de Tom Cruise, Jodie Foster, Meryl Streep e até George Lucas, ícones do seu cinema comercial. O que o mundo acharia dessa sintonia?

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