Da margem às Olimpíadas: conheça a cultura do skate no Brasil e no Ceará

Apesar de ainda enfrentar preconceitos, a cultura do skate reverbera no estilo de vida de milhares de jovens dos espaços urbanos do País

“A vida te pede, mas a vida não te dá. Devagar com meu skate um dia eu cheguei lá”. O cantor e compositor Chorão (1970 - 2013), da banda Charlie Brown Jr., foi - e ainda é - um dos grandes nomes do rock nacional. Com letras que revelavam suas experiências e seu estilo de vida urbano, tornou-se um dos maiores símbolos brasileiros da cultura do skate. Mas essa atividade extrapola os limites do esporte e ganha significados simbólicos. É, desde o início, uma identidade. Como o vocalista do grupo de Santos entoou várias vezes: “De skate eu vim, de skate eu vou. É desse jeito que eu sou. É o que tenho, é o que quero, é o que sei, é o que faço”.

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Talvez não seja possível afirmar em que ano específico o movimento surgiu, mas ganhou intensidade entre os surfistas da Califórnia na década de 1950. Eles, que tinham que esperar as boas ondas para surfar, se adaptaram da água para a terra. Mas aquele equipamento virou uma referência mundial: por ser visto em áreas urbanas, foi agregado às culturas consideradas marginalizadas, como o rap, o hip hop e o grafite. Foi associado, portanto, à simbologia da cidade.

Com esse processo, cresceu também a discriminação. No Brasil, mais especificamente em São Paulo no ano de 1988, o então prefeito Jânio Quadros chegou a proibir a prática na capital paulista. O principal motivo era que os praticantes se reuniam no Parque do Ibirapuera, onde a prefeitura funcionava na época. Os jovens fizeram passeata pedindo a liberação, mas a atividade só foi legalizada quando Luiza Erundina assumiu o cargo em 1989.

“O skate, de certa forma, é um ato político. A história do skate no Brasil, principalmente em São Paulo, foi voltada para a discriminação entre vários poderes e outras instituições”, pontua Davi Gomes Barroso, coodernador responsável pela Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude da Prefeitura de Fortaleza.

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Na capital cearense, a ocupação dos espaços públicos aumentou na última década. “A importância desse esporte estar nas Olimpíadas, com atletas que inspiram novas gerações, é que a gente passa a enxergar o skate como uma potência. Em Fortaleza, por exemplo, apesar de já existirem algumas pistas de skate antes, elas tiveram um crescimento exponencial nos últimos 10 anos. Agora tem no Pici, José Walter, Mondubim…”, cita Davi.

Além de esporte, andar de skate se tornou uma cultura nos espaços urbanos
Além de esporte, andar de skate se tornou uma cultura nos espaços urbanos (Foto: Suzana Campos/ Rede Cuca)

Segundo ele, isso movimenta uma grande cadeia produtiva na economia, que envolve a produção de skates e até áreas artísticas. “Aqui, as pessoas se encontram, vão nas pistas, pedem melhorias, manutenções... Quando falamos de skate, falamos de toda uma cadeia produtiva, de um mercado que tem crescido em Fortaleza”, comenta.

Apesar da movimentação de grupos, ainda há muito o que melhorar, principalmente, no âmbito político. “O processo de popularização ocorre de maneira lenta. Os políticos não valorizam esse esporte, que tem um cunho social e cultural muito grande no nosso Brasil. O skate é um esporte periférico, de custo-benefício baixo. Toda criança, quando vislumbra um esporte, seu primeiro contato ou é a bola ou é o skate”, opina Renner Souza, professor de skate da Rede Cuca.

O profissional, que agora ganha a vida ensinando seus alunos, teve seu primeiro contato com o esporte e o estilo de vida ainda na adolescência. “Comprei um skate aos 13 anos. No começo, minha mãe não me apoiava porque via o skate como um esporte marginalizado, que ia me apresentar às drogas, que ia me apresentar à rua. Fui criado pela minha mãe, porque meu pai faleceu muito cedo, então ela tinha receio. Mesmo assim, minha avó apoiou, insistiu e deu certo”, recorda.

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Segundo ele, não havia apoio financeiro na sua época para que pudesse se manter no esporte. Por isso, encontrou outros jeitos de driblar a situação: formou-se em educação física e se especializou. “Não consegui me tornar um profissional, mas não desisti dos sonhos (...). Hoje o sustento da minha família vem do skate”, diz.

Para o professor, a prática é mais do que um esporte, um lazer ou um meio de transporte. “O skate tem várias vertentes que envolvem um contexto cultural urbano e social muito grande. Vai do graffiti, do rap, da forma de se vestir, da identidade da pessoa e de sua sociabilidade. Não existe uma frase melhor pra contextualizar o skate a não ser dizer que é um estilo de vida”.

Do Pirambu à Califórnia

Lucas Rabelo ainda era uma criança quando subiu pela primeira vez em um skate. Influenciado por amigos, queria ir para competições, viajar e frequentar outros bairros - assim como via as pessoas próximas a ele fazendo. Foi um processo tão natural que a profissionalização aconteceu quase da mesma forma: “comecei a viajar pra outras cidades. Comecei a competir em campeonatos que não eram no Nordeste. Eu, a partir desse momento, vi que as coisas estavam ficando sérias e que eu poderia, sim, viver de um sonho. Foi incrível”.

Nascido e criado no bairro Pirambu, ele se mudou para Porto Alegre para continuar na profissão. Agora, também vive entre o eixo Rio Grande do Sul e Califórnia, com maior foco nos Estados Unidos. Patrocinado por marcas famosas na área, incluindo a Redbull, o jovem sente orgulho de representar o lugar em que nasceu.

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“Com palavras, em qualquer língua que eu tentar, não vou conseguir me expressar 100%, sabe? É algo incrível para mim poder representar o Nordeste, Fortaleza, de onde eu vim. O Nordeste tem muitos skatistas bons, mas infelizmente, não temos tantas oportunidades para seguir nossos sonhos”, afirma.

Seu maior objetivo é chamar a maior atenção possível para a região que, mesmo distante fisicamente, ainda chama de lar. “Esse é um dos meus planos: poder ajudar essas pessoas que, às vezes, não têm condição. Eu quero ser essa pessoa para elas”. Por onde percorre, carrega consigo o lugar de onde veio: “Eu sempre vou carregar no peito e com muito orgulho que sou do Nordeste, sou de Fortaleza, sou do Pirambu”.

Para isso, mira no maior evento multiesportivo do mundo. Quer, em 2024, representar o Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris. Agora que as Olimpíadas agregaram o skate à sua programação oficial, é uma possíbilidade. “Os planos para o futuro são andar muito de skate, me tornar uma pessoa melhor a cada dia que passa e batalhar para estar nas próximas Olimpíadas, porque eu vi o quão grande é isso. Então, é algo que se tornou um sonho para mim estar lá”.

Para ele, a cultura do skate em Fortaleza é fundamentada pela amizade. “Quando eu falo sobre Fortaleza ou se alguém conhece Fortaleza, as pessoas sabem que são todos amigos. Há companheirismo e diversão. A gente está sempre dando risada, é sobre sorrir e se divertir”.

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Vida às pistas

Aos 41 anos, Ely Martins conheceu o skateboarding na década de 1990. Era diferente de outros esportes que conhecia e, assim, se apaixonou. Entretanto, após algumas lesões, precisou parar. Decidiu que continuaria na área, mas de outra forma: agora, constrói "skate parks", ambientes destinados à prática.

“Isso começou no Norte do Brasil, como uma consequência de um processo natural. Comecei construindo rampas com amigos na minha cidade natal, em Belém. Como eu era formado em marcenaria e gerenciamento, também ajudei inúmeros campeonatos amadores no estado construindo obstáculos e pistas”, recorda.

Agora, ele reside em Fortaleza e constrói pistas em vários lugares do país. “Trabalhei muito tempo no mercado e, com um tempo, percebi que eu precisava contribuir muito mais. Do Norte, vim para o Sul”.

Há alguns anos, ele também filmava skatistas próximos e publicava em seu canal do Youtube para ajudar na evolução. Inclusive, há registros do próprio Lucas Rabelo em cima de um skate há quase uma década. Sem tempo, Ely Martins parou, mas ainda pretende retornar o hobby.

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O profissional, que já tem 26 anos de experiência, fala sobre a expansão dessa prática. “O skateboarding faz parte da história brasileira há décadas, nas ruas, nas praças e nas pistas. Culturalmente sempre esteve presente na música e na arte. Com muita luta, conquistou reconhecimento nacional e mundial, como estilo de vida e esporte. Antes era uma tribo fechada com mercado próprio e autêntico. Hoje em dia, tem uma visibilidade global por fazer parte do quadro olímpico”.

E depois das Olimpíadas?

Andar de skate no Brasil não é apenas um esporte, mas também é um estilo de vida. Apesar disso, o resultado das Olimpíadas impressiona por causa da falta de investimento: os brasileiros Kelvin Hoefler e Rayssa Leal receberam a medalha de prata em suas respectivas categorias, masculina e feminina.

Isso pode servir de porta de entrada para futuros profissionais e adeptos da cultura. “A vitória da Rayssa, por exemplo, representa uma mudança de chave sobre os jovens poderem começar nos esportes muito cedo e sobre a importância feminina nos esportes”, defende Davi Gomes Barroso.

“Fico primeiramente feliz que, agora, a sociedade possa enxergar o skate como um esporte de inclusão, de mudanças sociais e com valor imensurável. Nós sofremos preconceito diariamente e hoje as pessoas conseguem ver que não só é um esporte olímpico, mas que também pode proporcionar mudanças de vida”, afirma o professor Renner Souza.

Com 13 anos, a jovem apelidada de “Fadinha” entra para o rol dos melhores skatistas do mundo. Ela e Kelvin reverberam um legado brasileiro que surgiu há muitas décadas.

O filho de Chorão, Alexandre Magno, comentou em seu perfil no Instagram que o pai via Rayssa andar de skate e sabia que a menina tinha futuro. Isso não aconteceu de verdade porque a adolescente iniciou a carreira depois do músico falecer, mas ela divulga e coloca em prática as letras do cantor brasileiro: “Skate meu esporte. Meu meio de transporte. Parte da minha história. E cicatrizes dos meus cortes”.

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