Golpe na Guiné-Bissau: o cenário no país após militares tomarem o poder
Pesquisador guineense radicado no Brasil critica a ação militar e afirma que a suspensão do pleito e a prisão de candidatos violam princípios constitucionais
Em mais um golpe na recente história política da África, militares tomaram o poder na Guiné-Bissau, destituindo o presidente na última quarta-feira, 26, mesmo dia da divulgação do resultado da eleição realizada no domingo, 23.
Um dia após o golpe, houve a nomeação de um general como presidente interino do país. A nomeação do general Horta N'Tam como presidente e chefe da junta militar golpista é válida por um ano."Guiné-Bissau atravessa um período muito difícil de sua história. As medidas que se impõem são urgentes e importantes, e requerem a participação de todos", declarou o novo presidente.
Tanto o presidente em fim de mandato, Umaro Sissoco Embaló, quanto o opositor Fernando Dias de Costa reivindicavam a vitória. Conforme correspondentes da AFP, nesta sexta-feira, 28,os principais mercados da cidade voltaram a receber comerciantes e compradores. As lojas, restaurantes e pequenos comércios também reabriram as portas.
As fronteiras terrestres, aéreas e marítimas, que foram completamente fechadas na quarta-feira, foram reabertas, segundo vários relatos.
O POVO conversou com um cientista político do país para entender a situação da nação africana.Na entrevista que concedeu, Samuel Comprido, graduado em História na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e também mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC), explicou que as justificativas apresentadas pelos militares não têm fundamento com a realidade política do país.
Ele aponta que “as coisas precisam andar pelo menos na base dos princípios da constituição”. "Nós podemos ter nossos problemas? Claro, mas devemos resolver nossos problemas com base na Constituição da República”.
Segundo a nova cúpula militar, autodenominada Alto Comando Militar para a Restauração da Segurança Nacional e da Ordem Pública, o motivo da intervenção foi a suposta descoberta de um plano de “desestabilização da segurança nacional” e de “adulteração dos resultados eleitorais”, com afirmação de haver armamentos para concretizar tal ação. Contudo, para Samuel, “essa tentativa só pode vir do regime que está no poder, do regime que se sente ameaçado se de fato for confirmado pela comissão eleitoral”.
Na noite do dia 26, oficiais militares declararam “controle total” sobre o país, suspenderam o processo eleitoral, fecharam fronteiras e impuseram toque de recolher. A restrição de locomoção foi suspenso dias depois. A população permaneceu sem acesso confiável à informação: emissoras foram fechadas e há relatos de bloqueio de comunicações, configurando um cerceamento da liberdade de imprensa.
Para Samuel, também em doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), essa decisão coloca em xeque a legitimidade da Guiné-Bissau no cenário internacional: "Isso não dignifica a imagem do país, nem dentro, quanto mais fora”. Ele reforça que, independentemente de quem saiu vencedor ou perdedor, “o povo merece saber quem ganhou de fato o pleito como em qualquer país ou sociedade. É necessário ter um pronunciamento oficial da organização que realizou o pleito”.
A situação segue incerta. Enquanto a comunidade internacional condena o golpe e exige o retorno da ordem constitucional, Guiné-Bissau permanece nas mãos dos militares, um retrocesso que, para muitos analistas como Samuel, ameaça gravemente o futuro democrático da nação.
A postura que o Brasil deveria adotar
Para Samuel Comprido, o país onde vive e se formou — o Brasil — tem papel importante no atual momento da Guiné-Bissau. Ele defende que “tem de haver um posicionamento por parte da Comunidade de Língua Lusófona”. Segundo ele, países como Brasil, Cabo Verde e Angola compartilham laços históricos e culturais com Guiné-Bissau, o que torna o apoio desses Estados especialmente relevante.
“Esperamos uma posição, que há de haver em respeito aos princípios da Constituição, aos princípios democráticos”, afirma. Ele acredita que essa postura deve ir além de meras declarações: é necessário que haja pressão diplomática internacional, apoio à divulgação dos resultados eleitorais legítimos e garantia de que normas constitucionais sejam respeitadas.
Vale lembrar que, de fato, o governo brasileiro já manifestou preocupação. Em nota oficial, o Ministério das Relações Exteriores expressou apreensão e condenou a declaração do Alto Comando Militar que assumiu o poder. O Brasil apelou a todas as forças políticas de Guiné-Bissau para buscar o diálogo pacífico com vistas ao retorno à ordem constitucional.
Para Samuel, esse tipo de mobilização diplomática pode ajudar a preservar a credibilidade da Guiné-Bissau no cenário global, proteger os direitos da população e evitar que o país se transforme em um exemplo internacional de retrocesso democrático.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar "profundamente preocupado" com a situação e denunciou que "qualquer desrespeito pela vontade do povo que votou pacificamente durante as eleições gerais de 23 de novembro constitui uma violação inaceitável dos princípios democráticos".
Aumento de golpes na África — por que a Guiné-Bissau é diferente
Nos últimos anos, a África Ocidental e o Sahel têm sido marcados por uma sucessão de golpes militares — no Mali, Níger, Burquina Faso, entre outros. A Guiné-Bissau junta-se agora à estatística. No entanto, Samuel Comprido sustenta que o caso guineense apresenta particularidades que o diferenciam.
Para ele, ao contrário de cenários onde os golpes são justificados por crises de transição ou por forças coloniais, ou neocoloniais ainda em atuação, “em uma situação como a nossa não há uma justificativa plausível”. Ele aponta que não havia alegações sustentáveis de fraude eleitoral capaz de justificar um golpe, tampouco haveria uma situação de “transição colonial”.
Além disso, ele argumenta que no caso da Guiné-Bissau não há um contexto de guerra civil ou invasão externa. “A narrativa difundida por militares é a de que havia uma tentativa de subversão da ordem, de manipulação dos resultados eleitorais. Mas essa tentativa só pode vir do regime que está no poder, do regime que se sente ameaçado se de fato for confirmado pela comissão eleitoral.”
Localizada entre Senegal e Guiné, Guiné-Bissau já havia registrado quatro golpes de Estado e várias tentativas de tomada do poder desde a sua independência de Portugal, em 1974.
O pesquisador afirma o golpe de 26 de novembro de 2025 não pode ser comparado aos golpes “tradicionais” da região. Para ele, a ação representa, antes, um retrocesso institucional forjado por atores internos para perpetuação de poder. "Aceitar esse tipo de ruptura seria abrir mão de tudo o que as sociedades africanas, em particular a Guiné-Bissau, conquistaram de democracia e direitos nas últimas décadas", apontou.
(Com AFP)
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