Professor do Ceará viraliza com dinâmica afetiva entre pais e estudantes
Parte de disciplina estadual que foca no estudante, o momento é chamado de Aula da Saudade e instigou a verbalização de sentimentos, explica o docente
08:00 | Dez. 28, 2025
Com mais de três milhões de visualizações, viralizou no TikTok uma dinâmica em sala de aula em que, incentivados pelo seu professor, estudantes cearenses telefonam para os pais e dizem que os amam e valorizam. O autor do vídeo, Mikael Medeiros, soma mais de 16 mil seguidores na rede social.
No vídeo em questão, é possível perceber, além das lágrimas de emoção, as reações, em sua maioria, preocupada dos pais. Em meio à comoção, até os professores da escola participam. “E o que foi que aconteceu?”, pergunta a mãe de uma das docentes ao ouvir “eu te amo”, como outros parentes.
A atividade de cunho emocional se chama “Aula da Saudade” e integra o (NTPPS), componente curricular em voga no sistema estadual de ensino do Ceará desde 2012.
Mikael é um dos professores que ministram a disciplina na escola Euclides Pinheiro de Andrade, em Milhã, município a 262,23 quilômetros de Fortaleza visto no vídeo viral. Na organização desde 2019, o pompeuense tem dedicado oito de seus 28 anos a ensinar na rede pública de ensino.
O professor conta que, a cada ano, seu objetivo é propor dinâmicas diferentes para o NTPPS. No fim de 2024, ele recebeu áudios gravados por pais de estudantes, reproduzidos aos filhos com fones de ouvido, em sala de aula.
“Neste ano, senti que era o momento de dar um passo a mais: que não fosse apenas ouvir, mas falar”, contextualiza Mikael. “Que eles próprios ligassem para essas pessoas importantes e dissessem, com a própria voz, o quanto elas são fundamentais em suas vidas”.
Segundo ele, o telefonema objetiva ajudar os estudantes a verbalizar sentimentos: “Muitas vezes não é falta de sentir, como aparece claramente no vídeo, mas falta de espaço, de tempo ou até de coragem para falar”.
Além do “eu te amo”, os participantes foram orientados a agradecer seus pais ou responsáveis pelo esforço feito em prol de sua educação. “Eu estarei sempre na primeira fila por você, você sabe disso. Você já é meu orgulho. Você vai ser um grande homem”, responde uma das mães, no vídeo.
No mesmo dia da atividade, Mikael conta ter encontrado alguns dos pais, que relataram preocupação inicial ao receber a chamada, mas o agradeceram pelo gesto. “Disseram que tinham se emocionado, que aquilo melhorou o dia deles e que a escola deveria promover mais momentos assim”.
“Eu quis abrir um espaço seguro para que essas pessoas soubessem que são amadas, que são importantes”, explica o filósofo.
“Muitos alunos são filhos de agricultores que não estudaram, outros têm pais escolarizados, mas todos carregam histórias de esforço coletivo. Nenhum aluno chega sozinho. Sempre há muitas mãos por trás de cada trajetória”.
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Licenciado em História e Filosofia, o professor conta vir de realidade semelhante à de alguns alunos: “Estudei toda a minha vida em escola pública, cursei graduação em universidade pública e sou filho de agricultores”.
Ele publica conteúdo sobre educação e ensino no TikTok desde 2021 e conta que não esperava um vídeo com tanta visibilidade. “Postei esse vídeo como postei tantos outros, sem nenhuma intenção de viralizar. Fui dormir e, ao acordar, percebi a repercussão”, relembra.
Os comentários foi o aspecto da publicação que mais o marcou. “Pessoas dizendo que nunca viveram algo assim na escola, outras dizendo que também tinham dificuldade de falar ‘eu te amo’ para quem estava perto”, enumera ele.
“A mensagem que espero que fique é que educar também é cuidar, é criar espaços de afeto, de fala e de escuta. Pequenos gestos podem transformar pessoas e, às vezes, atravessar muito mais gente do que a gente imagina”.
NTPPS: o que é a disciplina e como funciona?
O Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais é considerado uma proposta inovadora na educação, que foca na individualidade e no crescimento do estudante e versa sobre emoções, histórias e contextos sociais dos jovens.
“Ensinar NTPPS, para mim, é uma das experiências mais significativas dentro da escola”, analisa Mikael. Na visão dele, o componente é importante para “abrir espaços que muitas vezes não existem dentro da escola: espaços de diálogo, de autoconhecimento e de reconhecimento”.
No terceiro ano do Ensino Médio, a disciplina é divida em quatro “culminâncias”, explica o professor. São quatro eventos:
- o Fórum Estudantil, no 1º período do ano letivo, em que os alunos organizam um evento de tema diverso e convidam profissionais para debater, exercitando sua autonomia e responsabilidade;
- o Ubuntu, no 2º período, inspirado na , momento em que cada aluno convida para a escola alguém importante para sua trajetória, fortalecendo vínculos e relações;
- a Feira das Profissões, no 3º período, onde os alunos participam de feiras e também recebem profissionais na escola, o que ajuda a aproximá-los do universo do trabalho e tirar dúvidas sobre as áreas de atuação; e
- a Aula da Saudade, no 4º período, momento de encerramento não só do ano, mas do Ensino Médio, e “marcado por memória, emoção, reconhecimento e projeção de futuro”, conforme Mikael.
Por serem preparados a escutar e falar ao longo do ano, “não houve resistência” dos alunos frente à proposta de telefonar para parentes.“Quando apresentei a proposta e falei das pessoas que ajudaram cada um a chegar até ali, alguns alunos se prontificaram imediatamente a ligar”, relata o professor.
“Outros preferiram apenas ouvir, mas todos foram muito receptivos e respeitosos. Foi um espaço bonito de escuta”, descreve. “Os alunos se emocionaram juntos, acolheram uns aos outros. Isso não acontece por acaso. É algo construído durante todo o ano”.
E a participação no NTPPS vai além dos discentes, de acordo com o docente: “Não apenas oriento, mas me coloco junto, mostro minhas próprias vulnerabilidades. Quando o aluno percebe que o professor também sente, se emociona, entende que aquele espaço é seguro”.
Por meio desse entrelace de sentimentos e humanidade, o NTPPS “cria um espaço de afeto fortalece vínculos, melhora a convivência, amplia a escuta e ajuda o aluno a se reconhecer como sujeito. Isso também impacta diretamente na aprendizagem e na autoestima”, conclui Mikael.