Outro olhar sobre Santa Dulce dos Pobres
Santa Dulce dos Pobres me parece reunir tanto os atributos requeridos pela Congregação para a Causa dos Santos, responsável pelos processos de canonização no Vaticano, quanto a concepção popular de santidade
Há alguns anos, aqui mesmo no O POVO, ao me manifestar sobre aqueles que chamei de “santos do povo” lembrei alguns elementos que qualificam certas pessoas, na visão popular, para esse rico processo de “canonização paraoficial” (pertença à fé católica, sofrimento em vida e morte violenta principalmente). Os santos do povo são cultuados e elevados à mesma condição dos “santos oficiais”. Aqueles, ao contrário destes, além de milagrosos são próximos, cultural e temporalmente. Deles se sabe as histórias, convive-se com pessoas que os conheceram. Para a gente simples pensar os “santos oficiais” é um exercício de abstração, eu lembrava então. Compreende-se pois que tenham necessidade das imagens e que lhes deem um tratamento “personalizado”. As imagens possibilitam a proximidade.
Mas, e Santa Dulce dos Pobres? Ela me parece reunir tanto os atributos requeridos pela Congregação para a Causa dos Santos, responsável pelos processos de canonização no Vaticano, quanto a concepção popular de santidade, ainda que nesse caso a fé e a caridade sejam os elementos que sobressaem. Nesse sentido ela torna-se um marco. Basta considerar, além das justificativas da Igreja Católica para sua canonização e os milagres por ela reconhecidos, também os ricos depoimentos de fiéis de variados segmentos sociais. Neles destaco as falas orgulhosas de parentes que relembram momentos em família, de religiosos e demais baianos que com ela conviveram e com ela se dedicaram às obras de caridade. “Eu a vi fazendo...”, “eu a conheci”. E muito particularmente lembro a devoção “carinhosa” daquelas pessoas que vi pela televisão desfilarem por seus aposentos conhecendo-lhe os hábitos e contemplando seus objetos de uso pessoal. “Fiquei ainda mais feliz porque estou vendo de perto” ou “É como se estivesse com ela”. Maria Rita, a menina levada e devota, e a irmã Dulce viram uma só.
Simmel diz que a religiosidade precede a religião e o que está na origem da religiosidade é o sentimento de piedade, ou seja, uma disposição para amar, não direcionada a um indivíduo, sequer necessariamente a um deus. Esta concepção desvincula o sentimento religioso de qualquer ligação exclusiva aos objetos transcendentes; ele é uma infinidade de relações sentimentais com objetos bem terrenos; homens ou coisas, que podemos designar de religiosas. (a criança, o patriota, o subalterno, o soldado, por exemplo). Logo, pode haver religiosidade sem religião mas não o contrário. Penso que a combinação dos elementos de natureza, social, econômica e política dão historicamente lugar a manifestações variadas dessa piedade segundo culturas e povos. Também conjunturas até certo ponto anômalas como a que vive a sociedade brasileira atualmente pintam de cores particulares as devoções.
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AssineSanta Dulce dos Pobres portanto, além da particularidade de reunir dois caminhos de construção da santidade católica, vem nesse momento, como “primeira santa brasileira”, “nossa primeira santa” reforçar o sentimento de pertença comunitária dos católicos a uma nação chamada Brasil e roguemos para que não acabe servindo a obscuras manifestações de patriotismo. Num e noutro caso, é de proximidade que se trata, de intimidade. Mas também do desejável compartilhamento de valores e objetivos sem o que nenhuma religiosidade (na acepção simmeliana) quer direcionada aos santos católicos quer referida às lideranças políticas poderá fazer mais do que alimentar o intercâmbio de símbolos para nutrir as divisões e subdivisões da sociedade brasileira.
Júlia Miranda é professora titular da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenadora do Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política e Pesquisadora do CNPq
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