Bienal de Dança do Ceará: ‘Força Estranha’ traz o espaço à cena

"Força Estranha", criação de Clarice Lima em colaboração com Aline Bonamin, esteve em Fortaleza na quarta-feira, 29 de outubro. Leia análise da professora Rosa Primo

11:48 | Nov. 02, 2025

Por: Vida&Arte
Força Estranha, criação de Clarice Lima em colaboração com Aline Bonamin, esteve em Fortaleza na quarta-feira, 29 de outubro, no Teatro Dragão do Mar, no âmbito da XV Bienal Internacional de Dança do Cear (foto: Patricia Araújo/DIVULGAÇÃO)

Texto de Rosa Primo

"Força Estranha", criação de Clarice Lima em colaboração com Aline Bonamin, esteve em Fortaleza na quarta-feira, 29 de outubro, no Teatro Dragão do Mar, no âmbito da XV Bienal Internacional de Dança do Ceará.

A inserção desse trabalho no circuito da bienal, evento que historicamente tensiona práticas e discursos da dança contemporânea no Brasil, permite situá-lo em uma reflexão mais ampla sobre a centralidade do espaço como dimensão estética e ontológica da dança – deslocando o entendimento do espaço de simples moldura arquitetônica para matéria constitutiva da experiência estética.

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Neste trabalho, o espaço não aparece como moldura neutra ou como cenário a ser preenchido. Ele é tomado como matéria coreográfica, constituindo-se na e pela ação dos corpos. Clarice Lima e Aline Bonamin instauram uma espacialidade instável, em que som, luz e movimento operam como camadas que se sobrepõem, abrindo a cena a um jogo de forças.

A trilha sonora de Carla Boregas e a iluminação de Dimitri Lima configuram-se como instâncias compositivas que intervêm na própria constituição do espaço cênico. Mais do que recursos técnicos, atuam como agentes perceptivos que densificam e rarefazem a experiência, evidenciando a dança enquanto prática de espacialização.

Tal perspectiva aproxima-se de uma tradição de pensamento que recusa a separação rígida entre corpo e espaço, dando a ver na dança um espaço não restrito a extensão, mas composto em intensidade: uma superfície de virtualidades que o corpo atualiza ao se mover. A corporeidade dançante, como condição de possibilidade da espacialidade, indica que o corpo não está no espaço, mas é espaço.

“Força Estranha” concretiza essas formulações, ao propor que cada gesto não se encerra em si, mas deixa rastros, reverberações que permanecem vibrando mesmo quando a ação cessa.

Essa qualidade aproxima-se da noção de empatia cinestésica, segundo a qual o espectador é atravessado por uma experiência que excede a visão e convoca a percepção tátil e sensorial. Aqui, a empatia não é efeito psicológico, mas campo partilhado de ressonâncias: o público se vê implicado na instabilidade espacial, afetado por uma composição coreográfica que se faz na relação entre corpos, sons, luzes e matérias.

A exaustão dos gestos, a repetição dos movimentos e as suspensões prolongadas mobilizam no público uma resposta sensório-motora que extrapola a visão. O espectador sente no próprio corpo o ritmo da respiração das intérpretes, percebe a tensão muscular como se participasse do esforço e continua a experimentar o gesto mesmo quando este se interrompe no palco.

“Força Estranha” é aquilo que move e que escapa à previsibilidade da forma. Em cena, o movimento é impulso do encontro – uma dramaturgia de forças que pode ser lida à luz de uma certa lógica sistêmica. Nesse sentido, a obra reforça a ideia de que a dança não apenas ocupa espaço, mas o produz como campo de intensidades — assim como os sistemas tecnológicos produzem realidades a partir de combinações invisíveis de dados.

A lógica é sistêmica, mas sua força motriz é o afeto, capaz de sustentar a experiência coletiva e expandir o espaço em partilha. O público compõe junto, à medida que o espaço respira, pesa, transforma-se. Nesse percurso, pouco a pouco: estamos todos em movimento.

Ao apresentar-se em Fortaleza, “Força Estranha” reinscreve no contexto da Bienal uma pergunta crucial: de que modo a dança pode ser entendida como prática de espacialização?

Mais do que ocupar um palco, a obra revela o espaço como potência, como aquilo que se constrói e se transforma no próprio ato de dançar. Trata-se, portanto, de um acontecimento que reitera a dimensão política e estética do espaço na dança contemporânea.

Na Bienal do Ceará, Força Estranha reinscreve essa questão no corpo da cidade: como reaprender a viver o espaço após termos experimentado sua fragilidade e sua força? A obra oferece uma resposta sem palavras, apenas em vibrações, ressonâncias e gestos que continuam reverberando...

*Rosa Primo é bailarina, coreógrafa, jornalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes e dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora e mestre em Sociologia pela UFC, realizou estágio doutoral no Curso de Dança da Université Paris VIII (França). Lidera o grupo de pesquisa Dança, Infância e Autismo (DIA/CNPq). Autora do livro "A dança possível: as ligações do corpo numa cena". Iniciou seus estudos em Fortaleza e construiu trajetória artística entre Ceará e São Paulo, atuando como bailarina, atriz, crítica e gestora cultural. Desde 2014, desenvolve pesquisas cênicas em formato solo, com destaque para "Encanta o meu jardim", "Iracema" e "Tudo passa sobre a terra", obras que articulam corpo, memória, questões sociais e poéticas contemporâneas.

**A análise foi publicada a partir de parceria entre o Vida&Arte e a Bienal Internacional de Dança do Ceará. Nos próximos dias, outros textos serão publicados.