Nosso Baile: quando a festa encontra a cena

Nosso Baile: quando a festa encontra a cena

"Nosso Baile" leva jovens bailarinos e bailarinas do Ceará a trilharem caminho da dança mundial. Leia análise da professora Rosa Primo
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Texto de Rosa Primo*

Há um sentido decisivo em acompanhar jovens bailarinos e bailarinas do Ceará, egressos de um Curso Técnico em Dança, público, alcançando visibilidade internacional. Ao ocupar o palco do Théâtre Chaillot, dia 24 de setembro último, em Paris, no Ano do Brasil na França, esses intérpretes não apenas dançam: eles inscrevem na cena mundial os efeitos de uma política pública de formação que reverbera para além das fronteiras locais.

Não se trata apenas de uma estreia internacional: é o gesto concreto de um processo formativo que, iniciado nas salas de aula e nos bairros periféricos de Fortaleza, alcança uma das principais casas da dança mundial. E é também a prova da vitalidade da Bienal Internacional de Dança do Ceará, que, em sua 15ª edição, vem produzindo espetáculos inéditos em parceria com coreógrafos convidados de projeção nacional.

Esse dado não é apenas formativo ou circunstancial: é político. Ver corpos que emergem de políticas públicas de ensino técnico ocupando palcos internacionais, significa a inscrição de outras genealogias no mapa global da dança.

Estamos falando, mais especificamente, de “Nosso Baile” – criação de Henrique Rodovalho, nome consagrado da dança brasileira, fundador da Quasar Cia. de Dança – que teve estreia nacional em Fortaleza, no último sábado, dia 25 de outubro, por ocasião da Bienal de Dança do Ceará.

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“Nosso Baile” já traz no título sua afirmação: um baile que é nosso. A etimologia do termo remete ao latim ballare, dançar; e atravessa a história cultural como prática coletiva, espaço de sociabilidade e partilha.

No Brasil, o baile adquiriu múltiplos sentidos: da formalidade dos salões às festas populares, dos bailes de carnaval às práticas emergentes das periferias urbanas, como os bailes funk. Em todos esses contextos, o baile é lugar de encontro, mas também de conflito, de invenção e de resistência. Rodovalho, ao trazer o baile para a cena, não o reduz a uma representação folclórica, mas o reinscreve como matéria coreográfica.

O elenco congrega bailarinos de diferentes origens e estados – do Ceará, de São Paulo, da Bahia – reunindo corpos vindos de contextos periféricos, portadores de referências múltiplas, das danças populares às práticas emergentes da periferia urbana. Essa heterogeneidade não é apagada em nome da unidade: é justamente dela que nasce a força do espetáculo.

Acolher a singularidade do outro é condição ética de qualquer espaço democrático. Rodovalho, conhecido por seu rigor compositivo, dá visibilidade à singularidade de cada corpo, ao mesmo tempo em que os costura em estruturas coletivas precisas. O que poderia resvalar em dispersão, se transforma em uma composição espacialmente demarcada.

A precisão nas partituras coreográficas, seu ordenamento, se desdobra num caos coletivo. Essa é uma das marcas mais contundentes da obra: a tensão entre o caos da festa – ritmos, gestos, fluxos que evocam o baile popular brasileiro – e o que deve ser contido. Ou seja, como dar a ver o todo sem perder um sequer. É uma composição complexa, própria de pensadores como Rodovalho.

A dramaturgia se apoia fortemente na música: cadências e pulsações que atravessam os corpos e conduzem a cena. Não se trata de mero acompanhamento, mas de motor rítmico que arrasta intérpretes e espectadores. O humor também comparece, não como gargalhada, mas como ironia leve, como pausa que aproxima o público da cena. É nesse jogo de energia e cumplicidade que “Nosso Baile” conquista o espectador: o convocando a sentir-se dentro do baile.

O contexto internacional dá ainda mais espessura à obra. Estrear em Paris, durante o Ano do Brasil na França, é projetar para o mundo uma imagem da dança brasileira que escapa da homogeneidade.

O espetáculo mostra um país feito de diferenças, de corpos múltiplos, de uma juventude periférica que encontra na dança um espaço de afirmação. Ao mesmo tempo, reforça o papel estratégico da Bienal do Ceará como plataforma de difusão internacional, capaz de gerar obras inéditas e conectá-las a circuitos globais.

“Nosso Baile” revela, portanto, um Brasil em movimento: alegre, plural, inventivo. Mas também levanta perguntas: que realidades permanecem fora de cena? Que tensões a festa silencia? O que se mostra é aquilo que convém mostrar-se, diríamos, na moldura do palco.

Ainda assim, o espetáculo se impõe como gesto político e poético: transformar a diversidade de corpos em uma celebração coletiva, capaz de atravessar fronteiras e de afirmar, no Brasil e no mundo, a importância de valorizar a política pública de formação.

*Rosa Primo é bailarina, coreógrafa, jornalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes e dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora e mestre em Sociologia pela UFC, realizou estágio doutoral no Curso de Dança da Université Paris VIII (França). Lidera o grupo de pesquisa Dança, Infância e Autismo (DIA/CNPq). Autora do livro "A dança possível: as ligações do corpo numa cena". Iniciou seus estudos em Fortaleza e construiu trajetória artística entre Ceará e São Paulo, atuando como bailarina, atriz, crítica e gestora cultural. Desde 2014, desenvolve pesquisas cênicas em formato solo, com destaque para "Encanta o meu jardim", "Iracema" e "Tudo passa sobre a terra", obras que articulam corpo, memória, questões sociais e poéticas contemporâneas.

**A análise foi publicada a partir de parceria entre o Vida&Arte e a Bienal Internacional de Dança do Ceará. Nos próximos dias, outros textos serão publicados.

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