'Pssica': série da Netflix aborda exploração sexual no norte do País
"Pssica", nova série da Netflix com direção dos brasileiros Fernando e Quico Meirelles, aborda a realidade do tráfico humano no norte do País com suspense
15:11 | Ago. 31, 2025
Quando tinha por volta dos 16 anos e frequentava o segundo ano do ensino médio em uma escola evangélica, a professora de redação teve a ousada ideia de passar o filme “Anjos do Sol” (2006) durante duas aulas.
Não lembro exatamente a razão, mas a sensação de angústia que tive ao ver cenas de exploração sexual e descobrir a dura realidade que sofrem vítimas desse tipo de violência, permanece. O longa-metragem de Rudi Lagemann me veio à mente quando dei play na minissérie “Pssica”, recém-chegada ao catálogo da Netflix.
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Baseada na obra homônima escrita por Edyr Augusto, a trama acompanha duas mulheres, Janalice (Domithila Cattete) e Mariangel (Marleyda Soto), que têm seus destinos entrelaçados de modos distintos pelo machismo e patriarcado. Jana é vítima de tráfico sexual, já Mariangel busca justiça pela vida do filho, morto por piratas fluviais.
"Pssica": enredo cru e atravessado pelo Male Gaze
Com uma narrativa intensa, a produção dirigida por Quico Meirelles (“A Galinha que burlou o sistema") inicia com a protagonista exposta à violência sexual desde a escola, ao ter um vídeo íntimo exibido.
A vivência, infelizmente comum a muitas brasileiras, é abordada com certo "Male Gaze" (olhar masculino que mostra o corpo das mulheres como objeto) no início da trama e segue a mesma linha conforme Jana vai sendo exposta a esse mesmo tipo de violência - seguidas vezes ainda no primeiro episódio.
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O que torna a série difícil de engatar no começo. Além disso, Quico, assim como seu pai, Fernando – que assina com o filho a direção - parece gostar de mostrar a violência contra corpos dissidentes.
Corpos negros, queers, indígenas e de mulheres sofrendo violência são uma presença constante ao longo dos quatro episódios de 1 hora de duração. Apesar de se tratar de um thriller, a série poderia investir em outros modos de expor as violências que aborda.
Essa falta de cuidado gera um incômodo em quem assiste, principalmente se esse alguém fizer parte das minorias citadas acima. Pelo menos, foi que essa crítica que vos escreve sentiu ao ver tantas pessoas que já sofrem violência na realidade passarem pelo mesmo na ficção.
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Ainda que se trate de um thriller e o gênero por si só exija que a violência seja demonstrada, existem modos mais sensíveis e sutis que tornam as cenas mais viscerais de serem assistidas. Os recentes filmes “Manas” (2024), de Marianna Brennand Fortes, e “Pisque Duas Vezes” (2024), de Zoë Kravitz, fizeram isso com maestria.
A impressão é que os diretores dedicaram tanto tempo a mostrar violência que se esqueceram, por exemplo, de aprofundar sobre o passado conturbado de Mariangel como guerrilheira na Colômbia.
"Pssica" tem cearenses no elenco
Apesar disso, o enredo se desenvolve numa crescente interessante com pontos de virada cheios de suspense que despertam medo e uma ponta de esperança sobre o futuro de Jana e da justiceira colombiana.
Algumas cenas ganham mais nuances e sutileza, diminuindo um pouco da violência gráfica. O espectador se sente envolto na mesma maré de maldições das personagens, a “Pssica”, gíria nortista que dá título a série e indica mau presságio. Tudo isso embalado de muito rock doido, que traz uma leveza nos momentos mais tensos.
Outro êxito da produção é o elenco. Domithila entrega uma personagem condizente do que se esperaria de uma adolescente passando pelas situações as quais ela viveu. Sem baixar a cabeça ou bancar a donzela em perigo, Jana não desiste de lutar por si mesma e por suas outras amigas na mesma condição.
Marleyda, que esteve recentemente em “Cem anos de solidão” (2024), também da Netflix, brilha ao trazer uma mulher essencialmente latina, que mesmo sendo colombiana traz a força que perpassa gerações de mulheres atravessadas pela violência na América do Sul.
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O cearense Lucas Galvino é o bandido metido a bom moço Preá. Filho do chefe dos piratas, ele luta para ter sua posição no mundo do crime enquanto tenta elaborar uma boa ação aqui e acolá, como poupar algumas mulheres de serem violentadas por seus companheiros. Já a atriz cearense Fátima Macêdo dá vida à personagem Daiane.
"Pssica" - abordagem datada
Em relação à cultura da Região Norte, a série comete erros que poderiam ser evitados. A começar de um dos erros mais bobos com o personagem Miltinho, um menino indígena que está em busca da irmã Luzia que sumiu. Não é indicada qual é a aldeia ou se ele e menina têm pais. São apenas duas figuras que aparecem ali como auxiliares durante o destino de Jana.
Não teria problema nenhum se já não estivéssemos em 2025 e a discussão sobre diversidade não estivesse tão avançada. No geral, é mais um problema que classifica a série como datada.
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O tipo de história que já vimos antes em longas como “Cidade de Deus” (2002). Uma trama de denúncia sobre a realidade do Brasil que vai agradar à audiência, como vem acontecendo, afinal a mini-série entrou para a lista das mais assistidas da plataforma de streaming Netflix.
No entanto, se ancora na exploração da violência contra corpos dissidentes para alcançar seu sucesso. Definitivamente uma obra de Fernando e Quico Meirelles: tal pai, tal filho.