Dia dos Namorados: Regina Navarro Lins reflete sobre amores na sociedade
A psicanalista e escritora Regina Navarro Lins conversa com o Vida&Arte sobre as estruturas do amor romântico na sociedade atual
No Dia dos Namorados, as pessoas que estão em relacionamentos românticos costumam comemorar. Sair para um jantar, publicar homenagens nas redes sociais e se dedicar para um presente são algumas das ações corriqueiras. E, nesta data, celebrada oficialmente em 12 de junho, o Vida&Arte convida os leitores a refletirem sobre as relações amorosas na sociedade contemporânea.
Em entrevista ao O POVO, a psicanalista e escritora brasileira Regina Navarro Lins aborda temas como sexualidade e relacionamentos. A autora, que trata das mudanças do amor entre as gerações, escreveu livros como “Novas formas de amar”, “A cama na varanda”, “O livro do amor: da pré-história à renascença” e “A cama na rede: O que os brasileiros pensam sobre amor e sexo”. Leia:
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O POVO: Por muito tempo, vivíamos em uma sociedade que idealizava o amor romântico. Mas você defende que esse tipo de amor, aos poucos, está dando espaço ao desejo. Como essa mudança acontece? E o que justifica essa transformação?
Regina Navarro Lins - O amor romântico começou no século XII, mas não podia entrar no casamento. As famílias escolhiam com quem seus filhos iam casar. A minha crítica ao amor romântico é que ele é calcado na idealização. Você conhece uma pessoa, atribui a ela aspectos que ela não possui. Depois você se desencanta, se decepciona com a convivência porque não pode manter a idealização. O amor é uma construção social. Em cada período da história, apresenta-se de uma forma. O amor romântico, além da idealização, prega que as duas pessoas têm que se transformar em uma só, vão se transformar em uma só, que nada mais vai lhes faltar, que uma vai satisfazer totalmente as necessidades da outra pessoa e que, quem ama, não tem olhos para mais ninguém. Qualquer coisa só tem graça se o amado estiver presente. Então o que acontece é que o amor romântico está dando sinais de sair de cena. Toda vez que há uma mudança nas mentalidades, na forma de viver e pensar, essa mudança é lenta e gradual. O amor romântico, que prega a não-individualidade na medida em que prega a fusão, está saindo de cena porque os anseios contemporâneos são em busca da individualidade. Você está vendo, aos pouquinhos, esse amor saindo de cena e levando com ele a exigência de exclusividade. As pessoas estão buscando novas formas de se relacionar amorosamente e não entra a exclusividade. Por isso, não entra a monogamia. Por isso, nós estamos assistindo surgir o poliamor, amor a três, relações livres…
O POVO: Pessoas cada vez mais buscam relações livres, como o poliamor. De que maneira o poliamor reflete os pensamentos das novas gerações?
Regina Navarro Lins - O poliamor é uma das formas de relações não-monogâmicas. Você, para apontar uma tendência, tem que ficar aberto e perceber os sinais dessas mudanças de mentalidade. Mentalidade é a forma que cada época sente, vive, anseia, se comporta… E cada época é de um jeito. Acredito que o poliamor e as relações livres sejam uma tendência. Acredito que, daqui a algumas décadas, muito menos gente vai querer se fechar em uma relação a dois e mais gente vai optar por relações livres, relações múltiplas.
O POVO: A internet e as redes sociais se tornaram parte essencial de nossas vidas. Que impactos essas tecnologias trouxeram para a nossa forma de vivenciar o amor?
Regina Navarro Lins - As novas tecnologias se associaram à mudança de mentalidade que começou nos anos 1960 com a pílula anticoncepcional. A pílula anticoncepcional foi um marco na história porque, pela primeira vez, o sexo foi dissociado da procriação e aliado ao prazer. A partir da pílula, surgiram os movimentos de contracultura, o movimento feminista, hippie, gay… Movimentos de pessoas que não estavam mais dispostas a se submeterem aos padrões impostos de comportamento. Então, quando a internet surgiu, é claro que facilitou muito o contato entre pessoas por meio dos aplicativos. É um número enorme de gente que conhece pessoas por aplicativos. São pessoas que talvez não tivessem a chance de conseguir fazer amigos ou ter namorados se não tivessem aplicativos. Uma coisa interessante é que, agora, quando você sai com uma pessoa que conheceu em aplicativo, você já tem muitas informações sobre a pessoa. Então o comportamento amoroso está mudando muito. Em uma rede social, você pode se relacionar com várias pessoas. Se uma pessoa não é interessante, você sai fora. Por isso, a internet e as redes sociais se associaram à toda mudança de comportamento que vem vindo. Hoje nós estamos em plena transição entre os antigos e os novos valores. Há pessoas que discordam e perguntam: ‘a senhora acha que nossa sociedade está preparada para essas mudanças?’. Eu digo: ‘olha, vem fazer um passeio comigo aos anos 1950. Naquela época, se alguém quisesse se separar, era uma tragédia familiar, era impensável. Hoje é uma coisa muito natural. A mesma coisa era com a virginidade. As moças eram completamente reprimidas. Algumas décadas depois, isso perdeu a importância’. A gente tem que observar daqui a algumas décadas. A gente não pode pensar em uma coisa para o ano que vem, isso é um caminho. Acredito que as novas gerações vão viver as relações amorosas, inclusive o casamento, de uma maneira completamente diferente do que se vive hoje.
O amor romântico, calcado na idealização do parceiro e que prega a ideia de que duas pessoas se transformam numa só, nada mais lhes faltando, ainda está presente nas novelas, mas na vida real seus dias estão contados.
— Regina Navarro Lins (@reginanavarro) June 7, 2022
O POVO: Na sociedade atual, vemos pessoas adeptas ao poliamor, ao mesmo tempo que vemos pessoas arromânticas. O que essa diversidade no sentir o amor diz sobre o momento atual em que vivemos?
Regina Navarro Lins - Sempre se acreditou que o amor é só o que a gente vê. A gente aprendeu isso. O amor romântico, que começou no século XII, no século XIX passou a ser uma possibilidade. Mas ele entrou para valer no casamento no século XX, a partir de 1940, mais ou menos, muito incentivado pelos filmes de Hollywood. De lá para cá, as pessoas consideram o amor romântico como única forma de amor. Mas é um equívoco. Quando eu critico o amor romântico, pensam que estou criticando o amor. Existem várias, diversas formas de se viver o amor. Muita gente está se dando conta disso e quer se livrar das amarras do amor romântico, que pregam que as duas pessoas precisam se transformar em uma só sem haver individualidade. Eu acredito que uma relação amorosa só pode ser satisfatória se houver total respeito ao outro, com seu jeito de ser, de pensar, se comportar, com liberdade de ir e vir. Você ter amigos separados, programas independentes um do outro e principalmente não haver controle algum da vida do outro e um respeito total à individualidade de cada um. Acho que as pessoas vão descobrir aos poucos.
O POVO: O amor é sentido de formas distintas a depender das gerações e das culturas. Quais são as principais diferenças do amor para as gerações anteriores e para as novas gerações?
Regina Navarro Lins - O amor em cada época é vivido em um jeito. As principais diferenças para o amor nas gerações anteriores é muito clara. As pessoas eram enquadradas, ninguém podia sair do modelo. As singularidades desaparecem, todo mundo passa a desejar as mesmas coisas, pensar igual, porque senão não é considerado amor. Nas antigas gerações, havia pouca intimidade entre as pessoas, entre os amigos. Tudo era uma coisa mais aparente. Nos anos 1950, havia uma total preocupação com o que os outros iam pensar, dizer, o que o vizinho ia falar… As pessoas eram muito presas à ideia de que poderiam ser criticadas e não serem aceitas. Acho que cada vez mais jovens estão se libertando disso. Ainda bem, porque é um pré-requisito para você viver da forma que você desejar.
O POVO: As gerações atuais estão mais abertas para discutir sexualidade? E as gerações antigas também? Como ainda devemos avançar?
Regina Navarro Lins - As gerações antigas, de 20, 30, 40, 50 anos atrás, não discutiam muito a sexualidade, a não ser determinados grupos dos anos 1970 que já tinham se libertado disso. Mas a mudança de mentalidade é assim: sempre vem um grupo na frente. Algumas pessoas se libertam, outras ficam presas, apesar da insatisfação, aos modelos tradicionais. Para refletir e questionar todos esses aspectos que você aprendeu, as crenças, se libertar dos moralismos e preconceitos, você tem que ter coragem. Eu sempre digo que é fundamental refletir sobre as crenças e valores que nos ensinaram para vivermos sem preconceitos e termos coragem para viver outro tipo de vida. Então hoje se discute a sexualidade. A diferença é enorme. A diversidade, a bissexualidade, a homossexualidade, isso é discutido com muito mais tranquilidade. Mas o caminho é longo. Ainda existe muita gente presa às ideias patriarcais e machistas. Muitos homens ainda não se libertaram desse mito da masculinidade, mas acho que estamos avançando. É um esforço coletivo contra essa mentalidade retrógrada que quer limitar o prazer de viver das pessoas.
O POVO: Que projeções você faz para o amor no futuro? Onde estaremos em alguns anos?
Regina Navarro Lins - Primeiro, a gente tem que falar sobre o casamento. Acredito que o casamento que a gente conhece vai deixar de existir, porque um número enorme de pessoas casadas hoje em dia vive muito mal. Acredito que pouquíssimas pessoas, 10% no máximo, vivem realmente satisfeitas e têm um casamento satisfatório. E elas vivem mal por conta desse modelo de casamento da nossa cultura, que é calcado no controle, na possessividade, no ciúmes e no desrespeito à individualidade do outro. Então é praticamente impossível viver bem. Quais são os maiores problemas no casamento? O sexo é o maior problema que os casais vivem. No casamento, o que você mais se observa é o fim do desejo sexual. As pessoas estão muito frustradas por não sentirem mais desejo sexual pelo parceiro ou pela parceira, principalmente, as mulheres que perdem o desejo sexual. Tenho um consultório há 48 anos e o que mais escutei durante toda a vida foram mulheres dizendo: ‘amo meu marido, não quero me separar, mas não tenho a menor vontade de fazer sexo com ele. É o meu melhor amigo, um bom pai e companheiro, temos uma vida social interessante. Mas gosto de ficar abraçada com ele fazendo cafuné’. Por que acaba o tesão no casamento? São vários os motivos, mas principalmente por esse controle, pelas pessoas não terem sua individualidade e sua privacidade. A dependência emocional é um fator muito comum no casamento. Se eu sei que meu marido depende totalmente de mim, tem medo de me perder, não tem vida própria, não transaria com ninguém, não tem projetos próprios, a relação vai se desfazendo. Cadê a sedução, a conquista? O mínimo de insegurança é necessário para viver uma relação amorosa e satisfatória em que o tesão continue existindo.
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