O mercado de animação no Brasil: incertezas e projeções para o pós-pandemia

Durante a pandemia, as animações 2D se tornaram uma das opções mais viáveis em um período sem encontros pessoais. Mas, com a falta de investimento, o futuro do mercado permanece instável

O início de novembro marcou o setor de animação brasileiro: o longa-metragem “Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente” estreou nas salas comerciais. A obra, dirigida por Cesar Cabral e produzida pela Coala Filmes, é uma adaptação do famoso personagem do cartunista Angeli. Na narrativa, o velho punk tenta escapar de um deserto pós-apocalíptico, que é, na verdade, um purgatório dentro da mente de seu criador em crise criativa. Essa história se tornou a primeira de animação nacional no cinema neste ano. Foi uma conquista para um mercado dominado pelos gigantes da indústria, como a Disney e a Pixar, mas nem chegou perto do número de exibições das franquias internacionais: em Fortaleza, por exemplo, há apenas uma sessão semanal no Cinema do Dragão.

Em 2021, as produções estrangeiras predominaram no Brasil, mesmo em um cenário de pandemia e redução do número de espectadores. É, porém, um problema estrutural. Nas últimas duas décadas, houve o aumento de investimento para o cinema brasileiro com o objetivo de movimentar o mercado e gerar empregos para os trabalhadores da área. Mas, desde 2019, os profissionais encaram uma situação precária. Quando a Agência Nacional do Cinema (Ancine), órgão de fomento, regulação e fiscalização, foi transferida para o Ministério do Turismo, deixou de lançar linhas para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), editais e outros recursos destinados ao apoio econômico do setor.

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E a pandemia agravou ainda mais a situação. Durante o período de isolamento social, empresas passaram a buscar as animações 2D - porque elas podem ser feitas em casa, cada pessoa com suas próprias ferramentas e sem a necessidade de encontros físicos. Houve também a procura por especialistas de outras regiões, fora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo. “O drible que aconteceu durante a pandemia foi muito nesse sentido, de começar a criar um diálogo através das plataformas remotas, de trazer animadores de vários outros lugares, cidades, países... Hoje se tornou mais comum ter pessoas de estados diferentes em produções por conta dessa situação”, opina Levi Magalhães, animador da Truca Studio e integrante do laboratório de animação Lanin.

Por outro lado, a técnica do stop motion sofreu consequências com o distanciamento. Neste formato, são utilizados modelos reais para gravar quadro a quadro com uma máquina fotográfica ou um computador. “Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente”, por exemplo, foi realizado desta maneira. “A produção de animação digital seguiu normalmente, mas a de stop motion foi tão afetada quanto o cinema live-action, por depender de espaço físico para ser feita. Conseguiram produzir aquelas pessoas que já tinham estúdio montado em casa e trabalharam em produções pequenas, como para publicidade”, diz Lena Araújo, animadora de stop motion.

Adaptações ao home office

Como qualquer outra área, a animação precisou se adaptar ao trabalho à distância. “O isolamento social modificou drasticamente a maneira de funcionarem os estúdios que trabalham com animação. Apesar de superficialmente até quem é da área do audiovisual, mas não de animação especificamente, achar que a gente pode trabalhar com facilidade, isso é parcialmente verdade, mas, principalmente, é uma verdade mais superficial”, ressalta Marcelo Marão, animador da Marão Filmes e membro da Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA).

Marcelo Marão é animador 2D e é fundador da 'Marão Filmes'
Marcelo Marão é animador 2D e é fundador da 'Marão Filmes' (Foto: Divulgação)

De acordo com ele, uma rotina de trabalho de oito horas permite que um trabalhador faça, em média, seis segundos de animação. Em longas-metragens, esse número diminui para dois segundos. “O que acontece é que cada um desses cinco, dez, cinquenta ou cem profissionais de um estúdio de animação estão fazendo o mesmo filme. Então, mesmo que cada um ocupe uma função distinta, são funções complementares”, indica. Algo, por exemplo, que poderia ser resolvido em poucos minutos no presencial demanda mais tempo de todos os envolvidos. “Isso muda imediatamente o cronograma, o orçamento que está vinculado também ao cronograma e a qualidade do resultado”, comenta.

Apesar disso, a parte de stop motion foi quase suspensa por completo. “Animação digital e tradicional seguiu acontecendo em home office ou com acesso remoto aos computadores do estúdio. Não foi fácil, mas os desafios foram contornáveis. O stop motion, não. Esse foi realmente afetado e ficou praticamente suspenso. As ofertas de emprego ficaram bastante escassas e muito animador foi trabalhar em outros países que tiveram melhor controle sobre a pandemia e puderam retomar as atividades antes do Brasil”, pontua Lena Araújo.

Perspectivas para o futuro

Há, porém, mudanças que os profissionais percebem que devem continuar nos próximos anos. A oferta de vagas para pessoas de todo o Brasil é uma dessas questões. “A gente tem, por exemplo, supervisores de São Paulo supervisionando animadores que estão em Fortaleza, em Curitiba, em Manaus… Então acredito que vai se tornar mais frequente esse intercâmbio de montar uma equipe que está em lugares diferentes. Está tendo essa busca mais ampla, diferente de alguns anos atrás, quando a gente via a ideia muito forte de que as vagas eram para quem morava por ali”, pondera Levi Magalhães, que também já faz trabalhos para empresas de outros estados.

Outra adaptação é o formato híbrido de trabalho, que ocorreu em muitos setores do mercado. “Provavelmente o que vai acontecer será um híbrido entre o presencial e o virtual. Depois de um ano e meio, quase dois anos, aprendendo a lidar com essa situação de trabalho à distância, em um momento que a gente eventualmente puder voltar às ruas, vai ser muito mais eficiente e mais prático aplicar várias dessas facetas que funcionam, que otimizam e deixam mais ágil ou até mais barato a produção, sem que seja obrigatório trabalhar de casa”, reflete Marcelo Marão.

Em busca de espaço

O investimento no setor audiovisual começou há aproximadamente três décadas. Em 1993, surgiu o “Anima Mundi - Festival Internacional de Animação do Brasil”, uma das grandes referências no cinema brasileiro, que se tornou um dos maiores da América Latina. Mas, por problemas financeiros, este é o segundo ano consecutivo que não acontece uma edição. “Me formei no meio da década de 1990. Na época, o trabalho que tinha era em pouquíssimos estúdios de São Paulo. Só que eu acompanhei a evolução da animação, essa evolução recente e bombástica da animação no Brasil. Nos anos 1990, surgiu o festival Anima Mundi. Na medida que o festival foi crescendo, foi crescendo também a produção de animação e as possibilidades de a gente trabalhar”, afirma Marcelo Marão.

No início dos anos 2000, também houve a fundação da Associação Brasileira de Cinema de Animação com o objetivo de unir os trabalhadores para lutar como uma classe. “Eu fui o primeiro presidente e participo do conselho e das diretorias desde aquela época. Isso foi essencial. Pela primeira vez todo mundo batalhando como classe, não como profissional individual”, recorda Marão.

Ele fundou a Marão Filmes para produzir de forma autoral e já conta com dezenas de curtas-metragens, como “O Arroz Nunca Acaba” (2005), “Eu Queria Ser Um Monstro” (2009) e “O Muro Era Muito Alto” (2019). “Um dos focos principais é justamente defender que a animação brasileira tenha a própria voz, aí que está o ponto mais forte e poderoso de todas as animações que o Brasil tem produzido e vai produzir”, explica. No momento, dirige seu primeiro longa-metragem, o “Bizarros Peixes das Fossas Abissais”.

Já Levi Magalhães faz parte do Lanin, um laboratório de animação nordestino que surgiu da união de alguns produtores que participavam das atividades da Casa Amarela Eusélio de Oliveira, da Universidade Federal do Ceará (UFC). A ação começou durante a pandemia, porque muitos deles queriam continuar a discutir sobre animação mesmo diante do isolamento social rígido. Semanalmente, o grupo se reúne para apresentar seus trabalhos. “A gente já está fazendo um ano de grupo. Está sendo uma experiência ótima. Está todo mundo participando, e a produção de animação não para. É um grupo voluntário. Vamos continuar procurando apoio e ajuda para esse grupo crescer. Mas, independentemente do que vier e mesmo se não vier, a gente vai estar produzindo animação”, ressalta.

Ele ainda é um dos diretores da Truca Studio, que iniciou a partir de uma equipe que buscava fazer animação cearense. “A gente está com dois projetos em desenvolvimento que, se tudo der certo, em breve estarão em produção e, logo em seguida, vão estar sendo veiculados na televisão. Estamos no processo de fechar o desenvolvimento e conseguir passar para a etapa seguinte de elaboração e execução dos episódios. Estamos também nos adaptando à situação atual do país, como as coisas estiveram. Mas sempre colocando os sonhos na frente. Queremos fazer animação, queremos produzir”, pontua.

Todos esses trabalhos ocorrem em meio a um cenário instável com poucas ações de fomento ao mercado. Com editais escassos e sem a manutenção do Fundo Setorial do Audiovisual, os animadores permanecem em busca de um espaço para se estabilizar. “Essa crise é absurda. Eu não canso de dizer: nós estamos em uma era de comunicação audiovisual. O conhecimento primeiro foi transmitido de forma oral; depois, de forma escrita. Agora, ele se dá através de filmes, séries, Youtube, Instagram e Tiktok. Criar essa crise no cinema nacional é um dos maiores tiros no pé desse governo, porque tira o Brasil da mídia mundial”, opina a animadora Lena Araújo.

Para ela, o profissional do cinema tem um papel importante de levar a cultura do País através do audiovisual. “Eu entendo que a estratégia seja tentar silenciar os artistas, porque nunca foi do interesse da direita dar voz a quem questiona, mas é uma estratégia burra também quando se pensa em crescimento econômico. Duas das maiores indústrias do mundo hoje são a de videogame e a do cinema, e o profissional de animação está apto a trabalhar nas duas. Um governo inteligente se esforçaria para que o setor crescesse”, diz.

O Ceará no nacional

A produção cearense, em um contexto nacional, também enfrenta problemas. Durante um ano, houve o cancelamento de editais por parte da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) após imbróglio com Tribunal de Contas do Estado (TCE-CE). Somente em dezembro, o plano de ações do Governo do Estado do Ceará prevê o retorno do que estava parado anteriormente, que são os editais: “Ceará de Incentivo às Artes”, “Ceará de Cinema e Vídeo” e “Cultura Infância”.

De acordo com Levi Magalhães, a região já teve várias vitórias, principalmente, depois do surgimento do Fórum Cearense de Animação, que luta politicamente pela classe. “Os dois primeiros longas de animação foram contemplados. Porém, há burocracias, sistemas, processos... São editais que já têm anos e que só agora está começando a ter um retorno para que esses longas sejam produzidos. A gente não está tendo muito espaço e estamos buscando esse espaço para conseguir fomento. É como se fosse uma grande luta”, pondera.

Em sua perspectiva, muitos profissionais miram em outros estados para conseguir oportunidades. “Muitos estão mirando em outros estados, tentando conseguir oportunidades, mas não deixando de lembrar que temos que ter uma luta aqui para que o mercado de animação consiga mostrar para a galera que está desenvolvendo políticas públicas e fazê-los perceber que a animação está criando espaço, está lutando para fazer acontecer”, diz.

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