20 anos de "Harry Potter": saiba como a obra se tornou um fenômeno cultural

O primeiro filme "Harry Potter e a Pedra Filosofal" estreou há duas décadas, mas a história permanece como uma das maiores franquias de cultura

Muito antes da popularização massiva das redes sociais, da cultura do cancelamento e da importância significativa que os usuários tinham acerca da opinião pública, um grupo de fãs já se mobilizava diante de uma conexão virtual ainda incipiente. Eram os “potterheads”, quem apreciava os livros da saga “Harry Potter” e compartilhava seus interesses com pessoas desconhecidas por meio dos blogs. Hoje talvez seja comum perceber a interferência direta que o público consumidor possui nas produções culturais. Mas, lá no início dos anos 2000, isso não era uma situação tão visível - porque se concretizou depois da história criada pela escritora inglesa J. K. Rowling.

Entre tantas questões que demonstram o fenômeno sociocultural deste universo fictício, um fato específico deixou claro o poder que essa narrativa teria nas próximas gerações. Antes do lançamento de “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, que completa duas décadas neste ano, a Warner Bros tentou fazer algo impensável na realidade atual: proibir os fãs de utilizarem a marca na internet sem pagar direitos autorais. Isso acarretou na denominada “Potter War”, que consistiu em uma série de embates legais que a produtora enfrentou depois da recepção negativa do público. No fim, a empresa mudou o contrato para permitir que os “potterheads” pudessem usar o nome do bruxo.

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Anos depois, a Warner Bros viveu outro grande problema com esse grupo: “Em 2010, existia uma aliança chamada Harry Potter Alliance, uma organização de fãs mundial que, quando a Warner abriu o parque universal de Orlando, eles se juntaram para pressioná-la a apresentar um certificado de origem dos chocolates que eram comercializados no parque”, comenta Flávia Zimmerle, professora da Universidade Federal de Pernambuco e escritora da tese “Relíquias de Potterheads: uma arqueologia das práticas dos fãs de Harry Potter”. Atualmente, a “Harry Potter Alliance” se tornou o “Fandom Forward”, ONG que reúne vários fandoms em prol da luta contra a violação dos direitos humanos.

“Os fandoms são uma forma de organização política. Mas os potterheads defendem a originalidade dos valores do cânone, que eles tomam para si. São valores que pautam a convivência deles. Defendem e cobram que esses valores sejam seguidos. O que acontece é que a existência da comunidade depende dessa responsabilidade moral que é assumida tanto perante o grupo com o qual você está se conveniado quanto perante a própria saga. Eles assumem um papel de guardião e integralidade desse cânone”, afirma. Isso explica, em partes, a insatisfação dos fãs com J. K. Rowling, acusada de transfobia por seus comentários nas redes sociais.

Mas o público que consome “Harry Potter” também é um sujeito ativo, que produz seus próprios trabalhos artísticos ao redor daquela narrativa. “Não só isso, em um estudo que fiz, muitos deles descobriram suas próprias vocações a partir das práticas naturais e cotidianas que existem nos fandoms. A construção de fanfics e alimentação de blogs formaram bons jornalistas e escritores, por exemplo”, pontua.

Esse foi o caso, por exemplo, de Beatriz Masson Francisco, mestre em letras e dona da dissertação “Leitores e leituras de Harry Potter”. “Minha história com a série começou quando eu tinha 12 anos, quando assisti aos três primeiros filmes de uma vez. Me encantei pelos personagens nas telas dos cinemas e, por isso, passei para a leitura dos livros – algo que só aumentou meu encantamento. Harry Potter me levou ao curso de Letras, pois sonhava em poder traduzir obras como essa”, recorda.

Ela, porém, deixou de lado o sonho de se tornar tradutora, mas enveredou pelo caminho da pesquisa. “Não desisti de Harry e seus amigos e passei a pesquisar a série à luz da teoria e crítica literária ainda na iniciação científica. Seguir na pesquisa acadêmica com esse tema foi um caminho muito natural para mim, porque nunca imaginei trabalhar com outra obra. Harry Potter foi uma série fundamental em minha adolescência e em minha vida adulta – tão fundamental que a transformei em objeto de pesquisa e trabalho”, revela.

Harry Potter como um fenômeno cultural

A saga do mundo bruxo não está só nos livros e nos filmes. É possível encontrar referências das histórias em quase todos os objetos de consumo cotidiano. Dos parques temáticos às lojas de departamento, muitos setores do comércio costumam vender produtos que trazem questões relativas à narrativa. Em entrevista com Fellip Agner Trindade, mestre em teoria literária e detentor da dissertação “Harry Potter: a imaginação de uma comunidade”, ele discorre sobre o fenômeno.

O POVO: Como Harry Potter conseguiu se tornar um fenômeno cultural?
Fellip Trindade: Harry Potter talvez seja o único de sua espécie, por assim dizer. Muitos trabalhos literários se tornaram referência cultural, como Dom Quixote, para citar apenas um exemplo, e tantos outros que ainda virão, mas nenhum ocorreu no mesmo cenário perfeito em que Harry Potter. Os primeiros livros foram publicados na virada do século e, por isso, ganharam forte influência das mídias. Os três últimos volumes da série foram publicados em pleno sucesso avassalador de bilheterias dos filmes, ou seja, um nicho cultural influenciando o outro de forma mútua. Além da performance nos cinemas, Harry Potter ainda contou com a popularização da internet e das redes sociais na primeira década do milênio. Os leitores e fãs, sobretudo os mais jovens que tanto se envolvem naquilo que gostam, encontraram um espaço no qual poderiam compartilhar suas leituras e seus interesses na série, criando uma comunidade global de milhões de leitores e fãs conectados pela rede. Além de um apelo da própria história de fantasia, a qual a autora J. K. Rowling conseguiu manter muito próxima do mundo “real” dos leitores (e não em mundos mitológicos ou secretos, como em O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia), o que facilitou a apropriação cultural, Harry Potter contou com a conectividade e a interatividade da era digital para que pudesse performar não apenas como literatura mas, também, como referência cultural para toda uma geração.

Harry Potter extrapola os limites da ficção e dialoga com a realidade. Na imagem, o castelo de Hogwarts foi construído no parque temático da Disney
Harry Potter extrapola os limites da ficção e dialoga com a realidade. Na imagem, o castelo de Hogwarts foi construído no parque temático da Disney (Foto: Reprodução/ Pinterest)

O POVO: Como os personagens e o mundo de Harry Potter extrapolam a ficção para adentrar na realidade do consumo?
Fellip Trindade: Eu não hesito em afirmar que Harry Potter é, até hoje, o maior exemplo de como extrapolar (e muito!) o universo literário. A série pode ser encontrada na forma dos mais diversos produtos que se possa imaginar: de clipes de papel a peças de roupa íntima. Tudo, obviamente, sob os direitos de reprodução da gigante do entretenimento, a Warner, e da autora da série, J. K. Rowling. Logo, trata-se de uma ação da indústria do entretenimento como nunca antes feito, uma coordenação de movimentos do mercado e da mídia que possibilitou essa presença do universo de Harry Potter em diferentes produtos de consumo. Mas nem tudo se resume às táticas do mercado. Não podemos negar a qualidade da história (ainda que possa haver discordâncias com base em gostos pessoais), não podemos negar também a forte ligação afetiva dos leitores e fãs da série, muito menos ainda negar o papel de artistas, diretores, produtores, figuristas, designers, e tantos outros agentes que contribuíram para uma criação artística e estética ligada a Harry Potter. É claro que todo esse movimento não ocorreria sem o investimento da indústria do entretenimento, o que condiciona, em grande parte, essa extrapolação da literatura às ações do mercado, mas não podemos negar que, sem o mínimo de qualidade, não haveria toda essa comoção em torno dos personagens, dos cenários, das artes e das histórias de Harry Potter que são consumidos pelos fãs.

O POVO - Você cita que Harry Potter se tornou um fenômeno sociocultural. Por quê?
Fellip Trindade: Quando se fala em Harry Potter, quase ninguém pensa em um livro na estante. A primeira coisa que vem à mente das pessoas é uma ideia, ou até mesmo um sentimento, uma ligação com universo da série. Algumas pessoas pensam nos filmes, nos atores, nos cenários (como a Escola de Hogwarts), em algum personagem, em algum objeto temático, na tatuagem que carrega no braço, na autora… Mas dificilmente no livro físico, como ocorre com tantos outros trabalhos literários. Além de uma ligação afetiva de um público que literalmente cresceu junto da série, Harry Potter ganhou os mais diversos espaços, da literatura ao cinema, de roupas a pontos turísticos. Tudo isso contribui para que o fenômeno ganhe um aspecto sociocultural. A própria história, seja pelo encantamento provocado pelo mundo mágico ou, até mesmo, por questões políticas abordadas na série, facilita a apropriação por parte dos leitores e fãs. É daí que nasce o fenômeno sociocultural, a própria comunidade, conhecida como Potterheads, passa a utilizar Harry Potter como referência literária (pelos livros), referência estética (pelos milhares de produtos e referências visuais da série), referência comportamental (pelos temas políticos abordados nos livros) e, claro, como referência afetiva. Junte tudo isso às ações da indústria cultural, que levaram o universo da série a todos os lugares, da TV às lojas de departamento, e o fenômeno sociocultural está formado. A série deixa de ser apenas uma referência literária para influenciar relacionamentos, amizades, vivências, estudos acadêmicos, moda, imprensa e, até mesmo, a ciência, batizando algumas de suas descobertas com referência à série.

Harry Potter: dos livros aos filmes

Uma preocupação sempre permeia os fãs quando eles veem suas obras favoritas serem adaptadas ao cinema: haverá a preservação da essência dos personagens e da história? Exemplos de adaptações que foram retiradas de seu contexto original não faltam, mas, com “Harry Potter”, a versão cinematográfica se manteve relativamente fiel.

“Não há uma discrepância significativa entre a construção do personagem de uma obra literária para o de uma obra fílmica. Os personagens tiveram suas construções de maneira muito linear, seguindo uma construção dentro da narrativa literária que foi perfeitamente transportada para a fílmica no que diz respeito às características físicas e psicológicas”, explicita Yunisson Fernandes, mestre em estudos de tradução e autor da dissertação “Harry Potter e a Pedra Filosofal: Construção dos Personagens Harry, Hermione e Harry - Do Livro Para o Filme”.

Segundo ele, “no livro e no filme, é construído um diálogo entre os eventos e como esses personagens se movimentam dentro deles. Suas características são bem delineadas e se consolidam dentro do texto de maneira quase fixa. Em alguns momentos, alguns personagens mostram uma outra oscilação nas suas características físicas e psicológicas”. Ele cita uma das protagonistas, Hermione. “Ela às vezes deixa transparecer suas fragilidades de uma menina que usa da sua inteira inteligência e esperteza para esconder suas vulnerabilidades. Isso é claro tanto no livro e é perfeitamente transportado para o filme”.

De acordo com o pesquisador, um dos principais motivos para essa adaptação ter sido similar seria o fato de autora ter participado como produtora dos primeiros filmes. “O olhar da escritora nessa produção certamente fez a diferença, embora essa participação não seja uma prática tão comum nas produções cinematográficas”, pontua.

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