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A resistência de Iracema no espetáculo de Rosa Primo

O crítico de dança Henrique Rochelle e o bailarino Rafael Campos compartilham com o Vida&Arte seus olhares sobre o espetáculo "Iracema", de Rosa Primo, encenado durante a Bienal Internacional de Dança do Ceará
00:00 | Out. 30, 2019
Autor O Povo
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Tipo Opinião

Iracema, invenção de si mesma

Por Henrique Rochelle

A Iracema de Rosa Primo, com direção de Clarice Lima, começa o espetáculo dentro de uma caixa. Para as crianças, um dos públicos-alvo do espetáculo, parece um jogo: ver o que está guardado, como isso vai aparecendo e se revela. Para os adultos, já se abre o espaço de tantas outras indagações sobre as caixas em que colocamos narrativas, representações e ícones, e o quando elas têm de verdade.

O trabalho é construído com um princípio de contação de história, mas sem o verbo. Imaginação pura. Na plateia, as crianças pareciam ter lido o programa, e nos ofereciam sugestões do que era e do que poderia ser aquilo dentro da caixa. É uma ema, dizia um. É um porco! É um carro, uma retrucava. É um louco.

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Iracema é isso tudo e um pouco mais. Ela é o Brasil representado de José de Alencar, violento e potente. Mas a Iracema de Rosa Primo não cede, não se seduz. Essa Iracema não é mulher de Martim, ela não é o Brasil pra ser mãe da dor e do sofrimento. Ela é o Brasil que pode ser aquilo que quiser.

Iracema mulher de si, Iracema invenção de si mesma. E ela sai da caixa como a guerreira, dominadora do arco e flecha. Rápida e fugaz — um sopro de esperança vindo da praia (que também recebe seu nome) acalmando o sol que abate a cidade.

Uma Iracema que brinca de morto-vivo e se recusa a ficar “morto”. Quer figura melhor pra resistência? Do país, dos povos indígenas, da arte, das mulheres, de tantas minorias que se espelham nessa história.

De um saco preto surgem um tanto de aparatos que completam as imagens dessa Iracema. Uma peruca para os seus cabelos “mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira”, uma boca para "a virgem dos lábios de mel” e seu sorriso mais doce que o favo da jati.

Ela os prende ao corpo com fita, junto de uma camiseta turística de Fortaleza — esse lugar que carrega por toda parte seu nome, ainda que ela nem sempre seja lembrada.

Uma luz negra se acende. O piso do palco revela seus desenhos. São escritos, planos, cálculos. Toda uma construção de Iracema e sua imagem. Ela entra por debaixo do papel, subverte a cena, rasga, arranca, se enrola, veste, gira, venta. E leva embora.

“Iracema” é uma brincadeira. Um outro olhar para uma figura mítica tão famosa e tão pouco conhecida, que aqui aparece para nos contar, não a sua história, mas as suas possíveis histórias. Não só o que ela foi, mas aquilo que agora ela é. E ela é Iracema, e tudo o mais que isso puder ser — num espetáculo poético, consistente, e muito bem realizado.

Henrique Rochelle é Crítico de dança, editor dos sites Da Quarta Parede e Criticatividade, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), e Pós-Doutorando na ECA-USP

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Espetáculo
Espetáculo (Foto: Foto: Luiz Alves/Divulgação)

É que de repente uma caixa de papelão começou a andar sozinha pelo palco.

Por Rafael Campos

Tipo assim, do nada?

Sim!

Uma caixa de papelão, doido?

Hunrrum.

Jura?

Tô te falando, maluco!

De partida, devo admitir para o leitor desta crítica: Iracema*, trabalho de dança contemporânea para o público infantil da experiente bailarina cearense Rosa Primo é um espetáculo que me ganha, sobretudo, por sua beleza plástica. Digo isso com certo orgulho, pois tenho tido comigo, nesses tempos de trevas em que vivemos, que a todo e qualquer momento o belo pode converter-se em uma justa medida de resistência (micro)política, basta que estejamos atentas.

Apresentado pela primeira vez ao público no segundo semestre de 2018, o trabalho tem concepção e interpretação de Rosa Primo, sob a direção viva de Clarice Lima, coreógrafa cearense radicada em São Paulo. Iracema é uma obra que desenvolve, em seus cerca de 40 minutos, uma série de experimentações coreográficas orientadas pela dança contemporânea, principalmente no que concerne ao interesse desta pelo movimento cotidiano – aqui, com um especial interesse pelo movimento cotidiano do universo infanto-juvenil, em seus jogos, brincares, esconderijos e afins.

Uma vez introduzido o trabalho, gostaria de, antes de qualquer coisa, ressaltar a importância do trabalho de cenografia da artista visual Raisa Christina para a execução desta obra: flertando com o minimalismo, Raísa construiu para Iracema algo simples e dinâmico, capaz de gerar engajamento no público, ainda que passível de ser destruído durante a execução do trabalho: um quadrilátero de papel madeira colado no chão com fita crepe, uma enorme caixa de papelão sobre esse, além do belo “guincho-passarinho”, feito inteiramente de fita crepe.

A simplicidade poética desses objetos ajuntados e (em certa medida) arruinados, nos ajuda a perceber certa coerência plástica entre as diferentes partes da obra, partindo, inicialmente, da relação de similaridade entre as cores e tipos de material cenográfico: linhas retas, cores neutras. É fato, além disso, que a cenografia, por sua precária banalidade, pode facilmente fazer parte da rotina do público infantil, funcionando como um fator de identificação entre esse público, tão pouco acolhido pela dança cênica de matriz europeia, e a dança de Primo.

Coreograficamente, Rosa buscou aqui investir na relação de seu corpo com as materialidades precárias que Christina disponibiliza para ela em cena: caixa de papelão, fita crepe e papel madeira. Ao brincar com esses materiais durante o espetáculo, Primo gera, propositalmente, imagens corporais que chamarei aqui de “monstruosas”. Por que chamá-las assim? Ora, para que o leitor experimente algo dessas imagens, eu pedirei que ele feche os olhos e imagine, por exemplo, uma caixa de papelão movendo-se sozinha por aí; ou então um corpo que desliza por baixo da terra e levanta-se grandioso, arrancando tudo que vê pela frente. Caso essas imagens não pareçam monstruosas para você, querido leitor, fique a vontade para lhe dar outro nome. (Melhor: lhe convido a assistir o espetáculo e nomear, você mesmo, esse corpo.)

Acho interessante, contudo, lembrar o leitor de que esse corpo nomeado monstruoso já foi visto antes em Encanta Meu Jardim, trabalho anterior de Rosa. Tal monstruosidade, presente principalmente no primeiro ato do trabalho de 2014, parece gerar uma série de reações imprevisíveis no público, que vão do tédio à curiosidade, do estranhamento a fascinação, talvez devido ao tempo esgarçado das ações ou mesmo pelo curioso movimento que dá vida às formas monstruosas que Rosa vai construindo em cada momento de ambos os espetáculos. É assim que por mais desconfortável que esse corpo monstruoso possa parecer, é justamente por meio dele que se estabelece um importante exercício de abertura da criançada (e de toda a gente grande também, porque não?!) para outros repertórios de corpo, tempo e espaço, tanto cotidiano, quanto dançado.

Além do já citado “corpo monstruoso”, Iracema divide também com Encanta meu Jardim o interesse por certa “dança com as coisas”: objetos em cena viram “partners” de dança dos bailarinos – e assim a dança já não é mais tão somente um privilégio do ser humano. Além disso, a maternidade parece ser um dos grandes mobilizadores da poética que Primo constrói em ambos os trabalhos aqui citados.

De Clarice Lima, Iracema parece herdar certo gosto pela anarquia, pela simplicidade em cena e também – paradoxalmente – pelo caos – um pouco de rock and roll não faz mal a ninguém! Basta lembrarmos da cena final de Intérpretes em Crise – trabalho de dança tragicômico em que Lima questiona jocosamente a figura do “Intérprete-criador”, fenômeno tão comum à dança contemporânea – e perceber certa afinidade de ambos os trabalhos por uma catarse destrutiva das condições iniciais da cena.

Já da ensaiadora Carolina Wiehoff, Iracema herda, talvez, algum gosto pela “limpeza” dos movimentos: característica de uma movimentação rápida e direta. E mais do que isso: precisa. Iracema, não devemos nunca esquecer, é também uma mulher guerreira.

De Rosa Primo, o trabalho parece carregar, acima de tudo, um enorme gosto pela infância. Seja na paixão pelos planos baixos. Seja na total falta de reverência em Iracema ao corpo adulto normatizado. Ou, tão simplesmente, nos jogos e brincadeiras infantis usados na dramaturgia do trabalho.

Um dos primeiros comentários do público infantil que assistia a Iracema foi o seguinte:

“ela [a caixa] não tem pés!”

E depois:

“é um galinha gigante!”

“Não, é um avestruz!”

Sim, essas são as reações espontâneas do público infantil ao se deparar com o corpo monstruoso de Rosa. Muitas das crianças até pensam em fugir de medo, logo de início, mas acabam, por fim, seduzidas pelo mistério desse corpo-monstro.

Rafael Campos é bailarino e escritor. Formado em Dança pela Universidade Federal do Ceará, possui pesquisa poética em torno das questões contemporâneas de gênero e raça; e da relação destas questões com o corpo que dança.

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