Como a ditadura agiu para impedir bispo cearense de ganhar o Nobel da Paz
Dom Helder Câmara, ex-arcebispo de Olinda e Recife, atuou fortemente nos difíceis anos da ditadura militar no Brasil, o que teria rendido sua indicação em três oportunidades ao Nobel da Paz, mas que encontrou no regime brasileiro a barreira para ser laureado
Um nome cogitado para receber o prestigiado Nobel da Paz. Nascido em Fortaleza, dom Helder Câmara (1909-1999) se enraizou na vida religiosa como arcebispo de Olinda e Recife, em Pernambuco. No período da ditadura militar atuou contra os atos graves de violação dos direitos humanos, o que o tornou alvo de uma trama para barrar a indicação ao prêmio.
A tramoia foi esmiuçada pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara (CEMVDHC), criada no ano de 2012 em Pernambuco, iniciativa do então governador Eduardo Campos. O grupo lançou um caderno especial intitulado “Prêmio Nobel da Paz: a Atuação da Ditadura Militar Brasileira contra a Indicação de Dom Helder Câmara”.
A Comissão foi criada para examinar e esclarecer as violações de direitos humanos ocorridas no período ditatorial em Pernambuco ou contra pernambucanos. Os trabalhos expuseram a trama realizada para impedir o Nobel da Paz para o cearense e foram encerrados em 2016.
Nos tempos da ditadura
Dom Helder Câmara atuou fortemente nos anos da ditadura militar no Brasil, iniciada em 1964 e seguindo até 1985, período em que o Brasil foi governado por cinco militares que se sucederam no poder, incluindo o marechal cearense Humberto Castello Branco, responsável pelos primeiros passos do regime.
"Ele chega ao Recife em 1964 e termina a caminhada nos anos 1980. Então, o seu episcopado foi marcado pela resistência democrática, pela luta pelo direito ao acesso à casa, à moradia e aos direitos das crianças e”, conta o professor Manoel Moraes, que é diretor cultural do Instituto Dom Helder Câmara (IDHeC).
Manoel Moraes integrou a Comissão Estadual da Memória e Verdade que recebeu o nome do arcebispo, além de ter sido relator do caderno especial que detalha como teria ocorrido a trama contra dom Helder.
“Dom Helder foi uma das principais vozes de oposição ao regime. Ele denunciava a violência, a tortura e a repressão”, destaca o doutor em direito e hagiólogo, além de professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, José Luís Lira.
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“Sem abandonar a batina, que algumas vezes era branca ou clara para suportar o calor do sertão. Ele foi um símbolo de fé e de coragem na defesa intransigente do que acredita e das liberdades fundamentais”, comenta.
As indicações para a honraria seriam um reconhecimento pelo combate aos atos da ditadura. Segundo a apuração da comissão citada anteriormente, dom Helder Câmara fora sugerido por “eminentes personalidades e importantes instituições culturais e religiosas da França, Itália, Alemanha, Bélgica, Holanda e outros países”, diz o livro.
Mas entre o Nobel da Paz e dom Helder havia articulações incessantes para impedir o religioso de ser laureado. Ainda segundo a apuração, foram três oportunidades perdidas pelo arcebispo, mesmo com o favoritismo atribuído a ele pela imprensa internacional.
José Luís Lira conta que “dom Hélder foi indicado várias vezes ao prêmio Nobel da Paz, especialmente em 1971, quando tinha grandes chances de vencer. No entanto, o governo militar brasileiro, temendo que sua vitória desse ainda mais visibilidade às denúncias de violações de direitos humanos no país, teria feito forte pressão diplomática e política contra a escolha”.
O empenho para evitar que dom Helder fosse reconhecido pelo prêmio é detalhado pela comissão, que reuniu documentos inéditos com colaboração do Ministério das Relações Exteriores, como mostra a obra que trata do plano contra o religioso.
O papel do embaixador do Brasil em Oslo
Concedido dezenas de vezes, o prêmio Nobel da Paz, idealizado por Alfred Nobel, homenageia homens e mulheres do mundo todo por feitos em prol da paz. Há premiações também nas áreas de física, química, fisiologia ou medicina, e literatura.
A figura do religioso atendia aos quesitos de ter vivido uma vida em prol da pacificação. Ele recebeu apoios e indicações para a candidatura ao prêmio de 1970, incluindo do laureado de 1968, René Cassin.
No caso de dom Helder, defensor da paz e dos direitos humanos, o reconhecimento não chegou. Em Oslo, na Noruega, onde a premiação é sediada, um homem cumpriu papel importante na trama contra o então arcebispo.
De lá, o embaixador do Brasil, Jayme de Souza Gomes, atuou no monitoramento da candidatura, passando as informações para o governo brasileiro. Um telegrama datado de 1970, escrito pelo representante do País, que detalhou os trabalhos contra o arcebispo.
Telegrama da Embaixada de Oslo, de 30 de dezembro de 1970, dizia: "Esvaziamento este ano [de 1970] [da] candidatura Helder Câmara [que] obedeceu [a] bem urdido plano executado [com a] maior cautela sem qualquer gestão oficial ou envolvimento [desta] Embaixada direta ou indiretamente. [O] êxito se deve [as] circunstâncias especialíssimas ligadas [à] proteção [de] capitais estrangeiros[,] ameaçados caso esquerdização Brasil[,] e [a] fatos ligados a vida pregressa [do] candidato habilmente explorados [em a] incisiva polémica jornalística”, conforme documentos obtidos pela comissão.
Manoel Moraes explica que o Estado brasileiro passou a fazer lobby contra a indicação, encaminhando documentos secretos para o Conselho de Nomeação do título, em Oslo, ao Prêmio Nobel, fazendo de fato fraude, produzindo informações falsas e municiando de forma clandestina, a partir da embaixada do Brasil em Oslo, os membros do Comitê de Nomeação e Eleição ao Prêmio Nobel, no sentido de distorcer o papel de dom Helder, o seu legado e sua história”.
Outro telegrama, enviado posteriormente, comunicou ao governo brasileiro que o presidente do Partido Democrata Cristão de Hamburgo, Dietrich Rollmann, apresentou a candidatura do arcebispo ao prêmio Nobel da Paz em 1971.
Após confirmação, nos bastidores, da candidatura, a embaixada em Oslo passou a trabalhar com intensidade. Um relatório confidencial, encaminhado às autoridades brasileiras, detalhou como estava a corrida pelo prêmio.
Nesse documento, como mostra a investigação da comissão, o nome do cearense aparecia com destaque entre os outros indicados, como o professor brasileiro Josué de Castro e o professor Norman Ernest Borlaug, que eram descritos em duas páginas cada. Em contrapartida, dom Helder teve dez páginas dedicadas aos seus feitos.
“A sua mensagem de não violência, na América Latina de hoje, pode ser considerada como tendo importância para a conservação da paz, porque representa uma alternativa realística ao aumento do terrorismo e dos movimentos guerrilheiros. A sua coragem pessoal é indiscutível. Ele possui prestígio e importância, o que faz com que a sua mensagem seja ouvida, tanto no Brasil, como fora do território nacional”, diz parte do relatório.
O trecho continua: “(O Sunday Times, de 17 de maio, fala nele como sendo o homem de maior influência na América Latina, depois de Fidel Castro). Deve-se mencionar, também, que Câmara não representa apenas ele próprio, mas, ao mesmo tempo uma grande e importante corrente da Igreja Católica da América Latina [...]”.
O referido documento traz as razões pelas quais ele seria um forte candidato:
- A posição de liderança de Helder Câmara dentro da Igreja, ao mesmo tempo em que ele atua de maneira importante na luta pela obtenção de reformas sociais;
- É protagonista importante para a não violência;
- Obteve sempre maior importância internacional, como se verifica pelo papel desempenhado durante o Segundo Concílio do Vaticano e por seu comparecimento a várias conferências internacionais.
Outro telegrama da Embaixada de Oslo, de 1º de fevereiro, Jayme detalha a iniciativa para colocar outros nomes à luz da indicação: os irmãos Villas Boas. A atitude foi trabalhada junto ao embaixador da Grã-Bretanha, com o objetivo de consultá-lo sobre um possível apoio do governo britânico à candidatura dos irmãos ao prêmio.
Posteriormente, a eliminação dos irmãos Villas Bôas e a classificação de dom Helder Câmara na lista dos semifinalistas representou um alerta ao governo brasileiro. A partir desse ponto, o embaixador passou a aprofundar as sondagens sobre as indicações.
Ao ter consciência da força do nome do arcebispo de Olinda e Recife, o embaixador do Brasil em Oslo procurou também alinhar aspectos que considerava negativos e que poderiam enfraquecer a candidatura de dom Helder Câmara, segundo a apuração da comissão.
Em 1970, a polêmica jornalística sobre personalidade e obra e suas anteriores vinculações aos regimes políticos de direita foi um dos pontos contra ele. “A primeira estratégia era tentar vincular dom Helder ao Integralismo, coisa que ele nunca negou, mas tentar fazer com que ele fosse associado a uma espécie de grupo extremista como os nazistas”, explica o professor Manoel.
O “receio de que sua influência crescente, em virtude da outorga do Prêmio da Paz, possa concorrer para a implantação de um governo de extrema esquerda no Brasil, a exemplo do que aconteceu recentemente no Chile e, assim, ameaçar os capitais estrangeiros, pela expropriação ou ‘estatização’, obviamente por em risco os investimentos noruegueses. É no Brasil que a Noruega possui a maior soma de capitais investidos no exterior”, mostra o documento da apuração.
O homem de nome vivo
Dom Helder Câmara batiza prédios, espaços públicos e rua em Fortaleza, além de nomear a lei 13.581, de 2017, que o declarou patrono dos Direitos Humanos no país.
Está em processo de beatificação e de canonização, oficialmente aberto em 2015 pela Arquidiocese de Olinda e Recife. “Nesse ano, ele passou a ser chamado servo de Deus e, em 2022, o Vaticano reconheceu as virtudes heroicas, concedendo-lhe o título de Venerável”, conta Luís Lira.
“O próximo passo é o reconhecimento de um milagre atribuído à sua intercessão, que poderá levá-lo à beatificação, elevando-o à honra dos altares, levando sua missão e exemplo a muitos que nem sequer o conheceram”, explica o professor.
Manoel Moraes conclui: “O legado de dom Helder é uma igreja viva. Ler dom Helder não é ler o passado, é ler o futuro, porque a preocupação para com o outro é uma preocupação fundamental numa sociedade cada vez mais individualista”.