Casal é condenado após manter mulher de 80 anos em condição análoga à escravidão em Fortaleza
A idosa trabalhava como doméstica na residência há 40 anos e não recebia salário, de acordo com decisão do TRF5. Penas de reclusão foram convertidas em prestação de serviços à comunidade
Duas pessoas foram condenados por manter uma mulher de 80 anos que trabalhava como doméstica em condição análoga à escravidão em Fortaleza. Decisão é da quinta turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5).
De acordo com Tribunal Regional Federal, os réus Maria Azevedo Benevides Militão e Militão Albuquerque e Sousa Filho foram condenados a penas de 3 anos e 6 meses de reclusão e ao pagamento de 97 dias-multa.
As penas privativas de liberdade de ambos foram substituídas por duas penas restritivas de direito: prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária.
A idosa trabalhava para a família há 40 anos e não recebia salário. A condenação foi divulgada pelo Ministério Público Federal (MPF) nesta quinta-feira, 21.
O parecer do Ministério Público Federal foi pela condenação. "A vítima é negra e tem quase 80 anos e vivia há cerca de quatro décadas na residência da família, em um quarto sem as mínimas condições dignas e razoáveis de moradia", divulgou o MPF.
Ambos foram condenados pelo crime do Código Penal Brasileiro que trata o crime de redução à condição análoga à de escravo.
De acordo com o Ministério Público Federal, o caso foi descoberto após uma fiscalização realizada pela Polícia Federal e Ministério Público do Trabalho no ano de 2023. O MPF no Ceará denunciou o casal nos crimes contra a liberdade pessoal, na redução a condição análoga à de escravo.
Denúncia anônima motivou fiscalização
O POVO teve acesso ao processo, que teve início a partir de uma denúncia anônima registrada na Central de Atendimento da Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio do Disque 100/ ligue 180.
O casal chegou a ser absolvido pela 11ª Vara da Justiça Federal no Ceará, que alegou existir uma relação de afeto entre a vítima e os réus e de não haver restrição à locomoção da ex-funcionária. No entanto, a curadora que representava a idosa entrou com apelação.
De acordo com a denúncia, havia jornada de 14 horas diárias, de domingo a domingo, ausência de pagamento de salários, férias e outros direitos trabalhistas. Parte da aposentadoria da idosa era retida pelos ex-patrões em conta conjunta e ela não possuía acesso.
"A empregada doméstica foi encontrada desnutrida, com dentes apodrecidos, transtorno de ansiedade e possível depressão, dormindo em quarto afastado e pequeno, sem ter sequer uma cama - ela dormia em uma rede, ao lado de um varal para estender roupas, materiais de limpeza, máquina de lavar e gaiola de pássaros", informa o MPF.
A procuradora regional da República, Caroline Maciel, apontou que "não é assim que se trata alguém da família" e ressaltou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, do Conselho Nacional de Justiça (2024) que estabelece que os juízes tomem decisão diante de possível situação de trabalho escravo doméstico.
"Mesmo quando há uma relação de afeto entre as partes envolvidas, isso não altera a realidade do contrato de trabalho e da prestação de serviços, especialmente em casos de trabalho infantil doméstico", aponta.
A decisão judicial e a denúncia às quais O POVO teve acesso apontam que a equipe de auditores fiscais realizou entrevistas, em separado, com um dos filhos da suspeita e da vítima. Foram confirmados os indícios de prática criminosa de trabalho escravo, ainda com evidências da jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho e moradia.
A mulher foi resgatada e houve atuação dos assistentes sociais do Centro de Referência em Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos do Ceará. Ela foi levada para um abrigo em Caucaia. A proprietária do abrigo ficou como curadora da idosa.