Histórias de pescador: Aquavelas festeja ancestralidade dos povos do mar neste domingo, 23
O POVO conversou com pescadores que irão conduzir as jangadas na maior exposição flutuante do mundo, o Aquavelas. O que guia as embarcações, além de arte, são boas histórias e o saber ancestral de quem vive do mar
No desfile de jangadas do Aquavelas, promovido pelo Sistema Fecomércio, por meio do Sesc Ceará, as telas pintadas por artistas plásticos cearenses são as protagonistas do espetáculo visual. Enquanto isso, outro tipo de arte se esconde por trás das mãos experientes que comandam cada embarcação: a arte da pesca.
Neste domingo, 23, cerca de 130 jangadeiros participam de uma exposição gratuita e itinerante ao longo da orla de Fortaleza, a partir das 8 horas. As 65 jangadas saem da enseada do Mucuripe, próximo ao Mercado dos Peixes, e seguem até a Vila do Mar, na Barra do Ceará.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Costurar a rede de pesca, “arriar” uma linha, saber se localizar dentro do mar, “ferrar” o peixe, amarrar o anzol. Todos esses são conhecimentos que fazem o pescador ser considerado, de fato, completo. Ter um apelido também compõe o pacote. A afirmação é do secretário da Colônia Z8 de pesca e agricultura de Fortaleza, Elias da Silva, ou “Pepita”.
As habilidades, herança preservada pela oratória e passada de geração em geração, exigem força e empenho. Como Elias alertou “se o sujeito for mole, ele morre”. Aos 43 anos, ele está longe de ser “mole”. Começou a pescar com o padrasto por necessidade aos 13 anos, ainda novo, como tantos outros colegas de profissão.
Em 30 anos de experiência, já passou de tudo um pouco. Antes de existir o Mercado dos Peixes do Vila do Mar, na Barra do Ceará, Elias relembra que o costume era vender os peixes em lonas no chão da praia. Na comum falta de gelo e freezers, a preservação do alimento era feita com sal, e, na falta de vento e motor, o jeito era conduzir a embarcação a remadas.
Hoje, dono de uma peixaria no Vila do Mar, ele acredita que a parceria com o Sesc trouxe visibilidade e melhorias para o grupo. “Essa relação com o Sesc nos fez crescer e ser vistos pela população. Hoje é filmado, batido foto, jogado na Internet e em vários meios de comunicação. Vai trazendo turista para conhecer o pescador, a comunidade e o artesanato que existe dentro da pesca”, indica.
Além de valorizar os grupos litorâneos da cidade, o Aquavelas promove um intercâmbio cultural entre essas vivências. O projeto integra a programação do Povos do Mar, evento que reúne mais de 200 comunidades tradicionais praianas do Estado para celebrar os saberes e os fazeres dessa cultura.
Aos 74 anos, José Gaspar mal pode esperar pelo início da programação. Considerado o pescador mais velho da comunidade da Barra do Ceará, segundo Elias, ele anseia pelo Aquavelas para rever velhos amigos. Os jangadeiros vêm de diferentes localidades, como Flecheiras, Bitupitá, Pirambu, Goiabeiras, Iparana, Pacheco, Mucuripe, Serviluz e Caça e Pesca.

“Eu participo desde a primeira edição do Aquavelas. Eu acho tão bom, sabe, eu tô contando os dias de ir para lá”, fala, animado. Além do desfile de jangadas, o Povos do Mar conta com exposição de artesanato, comidas típicas e palestras.
Mestre Gaspar começou a pescar aos 12 anos, obrigado pelo pai e vomitando durante toda a viagem, continuou por gosto à profissão. Mesmo tendo trabalhado como serralheiro aos 18 anos, o primeiro de 14 filhos permanecia visitando o mar aos fins de semana, até que enjoou de “bater cartão”. Hoje, é aposentado como pescador, mas ainda se aventura na jangada e até surfa em seu caiaque. Ele garante, rindo: “eu desafio um horror de gente novinho aqui”. É de se acreditar.
O verdadeiro canto da sereia
Na manhã de quarta-feira na faixa de areia do Vila do Mar, alguns pescadores conversaram com O POVO. De todos que ali estavam ouve-se que ser pescador é sofrimento. Seu Gaspar e Elias, por exemplo, não incentivaram os filhos a seguir o ofício, e eles não seguiram. O mesmo aconteceu com outros jangadeiros.
“Tem vários pescadores do meu tempo que não tem nenhum filho pescador. O Zé não tem nenhum filho pescador. O Nonato, meu irmão, que tem dois rapazes, não tem nenhum pescador. Esses que estão pescando aqui, não é nenhum filho de pescador”, relata Mestre Gaspar, enquanto busca na memória algo sobre a nova geração de pescadores.
Para Elias, “quem sabe o que o pai sofreu não quer passar pelo mesmo sofrimento”. Mas, para quem conhece o mar, o sofrimento é abandoná-lo.
José Alisson Bezerra da Silva, 29, ou “Barriga”, começou a pescar de “gaiato”. Foi escondido na embarcação de um amigo da vizinhança que ele ganhou o mar pela primeira vez, aos 10 anos. Aos 12, já pescava “profissionalmente”, conta. Mesmo com os protestos da mãe, o chamado do mar era mais alto.
“O que me chamou atenção foi a natureza. A gente tem uma natureza tão bonita, tremenda de Deus, aí a gente entra e vai pegar o peixe, trazer o pão de cada dia pra família e pro cliente”, destaca.

A rotina é pesada. Por volta das 13 horas, ele entra na água para deixar a rede, chegando em casa entre 16h30 e 17 horas. Já às 3 horas da madrugada é o momento de voltar ao mar e ver o que conseguiu ser pescado. Ele explica que pegar o material ainda cedo é essencial para garantir a qualidade do alimento.
Para além do cotidiano árduo, a vida de pescador esconde desafios ainda maiores. Aos 17 anos, Alisson saia para mais um dia de trabalho, acompanhado de dois outros jovens, de 12 e 14 anos, curiosos como um dia ele foi. Aos 18 km mar adentro, os três enfrentaram uma forte tempestade, que virou a embarcação e deixou o grupo à deriva por três dias e três noites.
Sorte para uns ou ação de Deus para outros, ao fim desse período a jangada foi se aproximando da costa, na altura da praia de Paracuru, cerca de 90 km de distância do ponto de partida. Depois de chegarem a terra, os jovens ainda tiveram de caminhar por cerca de quatro horas até acharem alguém que pudesse socorrê-los.
“O mais velho era eu, aí a responsabilidade deles estava toda comigo. Eles diziam que iam morrer, e eu pedia a Deus que desse muita força a eles”, relata. E conta que nunca pensou em largar a vida de pescador, mesmo depois do acidente.
“A minha vida é aqui, aqui é a minha casa, e o meu trabalho. O canto que eu tenho que voltar é pra cá, porque é a profissão que eu gosto de fazer e o lugar que eu me sinto bem”, assegura, se referindo ao mar e ao ofício de jangadeiro.
Há quem diga que vida de pescador é muito sofrimento. No entanto, na visão de Alisson, “é melhor sofrer no mar trabalhando para você do que sofrer trabalhando para os outros e depois ainda levar nome de ruim”, declara, em meio a risos.
A profissão parece ser difícil ao mesmo tempo que encantadora. Enquanto eles reconhecem o sofrimento do trabalho, também se reconhecem apaixonados pelo que fazem. Não se sabe se o risco de se aventurar quilômetros mar adentro é recompensado com o testemunho da natureza no seu estado mais cru, mas o que existe no momento em que o céu encontra o mar no horizonte por todos os lados, com certeza, parece ser transformador.
Povos do Mar
Este ano, a programação do Povos do Mar ocorre de 21 a 25 de junho, no Sesc Iparana Hotel Ecológico. O evento é gratuito e aberto ao público. A 14ª edição do encontro conta com mais de 200 comunidades do litoral, de 25 municípios do Estado. Durante cinco dias, rendeiras, mestres da cultura, pescadores, artesãos e marisqueiras trocam saberes e tradições, por meio de vivências, oficinas, rodas de saberes e práticas alimentares.
SERVIÇO
Exposição flutuante Aquavelas
Data: 23 de junho (domingo)
Horário: a partir das 8h
Local de largada: Enseada do Mucuripe (próximo ao mercado dos peixes)
Local de chegada: Mercado dos Peixes do Vila do Mar (próximo a praia das goiabeiras)
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