Bairros de Fortaleza: Passaré é sinônimo de afeto, laços e luta

Bairro da Regional 8, o Passaré carrega as histórias da família do ex-prefeito Raimundo Girão, das lutas por moradia digna e dos vestígios de natureza no meio urbano

13:53 | Dez. 20, 2025

Por: Taís Lustosa/ Especial para O POVO
O Zoológico Municipal Sargento Prata e O Parque Botânico, ambos no bairro Passaré, abrigam fauna e flora de Fortaleza. O bairro também guarda histórias e afetos da Capital; conheça (foto: FCO FONTENELE / O POVO)

Localizado próximo à Arena Castelão, o bairro Passaré foge aos olhos e interesses dos turistas que visitam a Cidade – e até mesmo dos próprios cidadãos alencarinos.

Com 56.160 habitantes, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, o Passaré é, e sempre foi, um bairro habitacional. Com 7,16 km² de extensão, o sétimo maior bairro de Fortaleza encontra-se na região sul da capital, na Regional 8.

Antes sítio Passaré, o lugar já foi um recanto para a família do ex-prefeito de Fortaleza, historiador Raimundo Girão, com uma fauna diversa e uma flora carregada por árvores exóticas, ainda encontradas nos nomes das ruas do bairro.

A região, que se encontra em intenso crescimento populacional, sobretudo, pela classe média, apresenta contrastes gritantes. As periferias do bairro ressaltam as desigualdades sociais presentes entre condomínios horizontais e conjuntos habitacionais.

No entanto, a população dos conjuntos, diversa socialmente, traz consigo histórias de construção de identidade, luta por moradia e uma parte fundamental da história do bairro Passaré.

O Passaré conta em suas ruas com nomes de árvores, em suas encruzilhadas e desigualdades, a história de um território que já foi atalho, vila, sítio e, agora, objeto de transformações econômicas e sociais.

Entre Messejana e Parangaba, Passaré é atalho

Com a chegada dos colonos portugueses e o estabelecimento da coroa, os tupinambás e potiguaras fugiram para outras regiões. Segundo o livro “Evolução Histórica Cearense”, do historiador Raimundo Girão, “muitos migraram até a Serra da Ibiapaba ou se acomodaram em trechos do litoral norte, enquanto os demais permaneceram agregados em aldeias, que depois se tornariam missões religiosas”.

Com o estabelecimento e formação das vilas, essas missões receberam nomes de origem tupi, a exemplo de Parangaba, Messejana e Caucaia. A origem do nome Passaré remete também a esse período.

Estando o Passaré localizado entre as vilas da Parangaba e a da Messejana, a lagoa serviu como um atalho entre ambas. Com o uso constante, a região recebeu o topônimo de Passaré, que em tupi significa “lagoa do caminho” ou “lagoa do atalho”.

Sítio Passaré e a família de Raimundo Girão

Originalmente, o Passaré pertenceu a uma sesmaria – lote de terras entregue a fazendeiros durante o período colonial – concedida ao lusitano Antonio José Moreira Gomes, por D. João VI, em 1810.

Durante o século XIX e até a primeira metade do século XX, o latifúndio foi se dividindo em glebas menores na medida em que os filhos e netos do português se casavam e assumiam partes da terra.

O núcleo da sesmaria, continuou com os descendentes até 1942, quando foi adquirido pelo ex-prefeito de Fortaleza, o historiador Raimundo Girão, e seu sogro, Prudente do Nascimento Brasil, fundadores do sítio Passaré.

Escrita pelo penúltimo filho de Raimundo Girão, Célvio Brasil Girão, a obra “Memória do Sítio Passaré” explora os vínculos da família com o espaço ao longo dos anos. Descrita pelo historiador como “o refúgio das minhas covardias”, o sítio foi uma espécie de paraíso para a família. Um lugar escondido e sagrado construído e preservado por eles e para eles.

Nos anos 1960, porém, duas glebas foram desapropriadas para a ampliação do Zoológico Sargento Prata e do Horto Municipal. Depois, já nos anos 1970, outras sete glebas foram desapropriadas para a construção do Centro Administrativo do Banco do Nordeste do Brasil (BNB).

Nesse momento, extrapolando os limites de sítio e sob o olhar do Poder Público, o nome passa a nomear toda a região. Porém é somente em 2009 que o Passaré recebe o título de bairro.

A última gleba restante do sítio pertencia à D. Cléa Gaspar Brasil e foi vendida em 2004. Era nessa área que se encontrava a Casa Grande, edifício construído na segunda metade do século XIX e usado como residência por parte da família Girão Brasil.

No livro, Célvio Girão detalha o momento da demolição da construção histórica. “Com o peito apertado e os olhos marcados pelas lágrimas da saudade, tivemos que ver, reduzidos a escombros, aquilo que representava quase duzentos anos na história da família. O progresso inexorável cobrou o seu preço de forma fria e brutal”.

Fraude e loteamento ilegal no sítio Passaré

Após a aquisição de parte do sítio Passaré pela Prefeitura de Fortaleza, um escândalo envolvendo falsidade ideológica e estelionato tomou conta dos jornais.

Registros históricos do O POVO relatam que o autor do crime havia falsificado as assinaturas do ex-prefeito e historiador Raimundo Girão e de sua esposa Maria Brasil Girão, conhecida como Marizot.

Segundo os jornais da época, “as duas praças da Prefeitura, no sítio Passaré, proximidades do Castelão, vendidas irregularmente por um espertalhão, serão reintegradas ao patrimônio municipal. Uma das praças foi hipotecada ao Bancesa por Cr$ 500 mil, e a outra, que estava sendo limpa na manhã de ontem, seria ocupada por um particular que pretendia fazer um ‘um roçado’, até que a Prefeitura tomasse a área”.

O bairro das ruas de árvores

Ainda que dominado pelo espaço urbano, a cobertura vegetal urbana do Passaré alcança 39% do seu território, segundo dados da Secretaria Municipal do Urbanismo e Meio Ambiente. A natureza no Passaré prossegue resistindo às intervenções.

Grande parte das espécies nativas da flora – divididas em árvores, arbustos, palmeiras, orquídeas, bromélias, cactos, trepadeiras e ervas – encontram-se preservadas na área do Zoológico Municipal Sargento Prata e do Horto Municipal de Fortaleza.

Essa diversidade, inclusive, sempre esteve representada nos nomes das ruas. Caminhando pelo Passaré, ainda é possível encontrar vias que carregam o nome de árvores da caatinga: Jatobás, Sabiás, Oiticicas, Carnaúbas e Aroeiras.

Em agosto de 2025, uma ação da Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor) aprovou a mudança de nome da Rua das Oiticicas para “Rua Mastruz com Leite”. O caso foi motivo de revolta entre moradores.

A mudança foi proposta pelo então vereador e atual deputado estadual Pedro Matos (Avante) e visava homenagear à banda de forró local, moradores do Passaré, no entanto, defenderam que a alteração foi feita sem consulta pública.

Para além das burocracias e da ausência de consulta pública, moradores também relataram que a alteração desconsidera a história que o bairro carrega.

Conjuntos habitacionais e a luta por moradia

Ao buscar os registros que marcam a história do Passaré, nota-se, à princípio, uma escassez de fontes oficais, estas quando falam do bairro, costumam tratar somente a partir da violência presente.

A segunda coisa que se nota, é a forte presença da formação dos conjuntos residenciais que compõem o Passaré. As histórias dos conjuntos são contadas e repassadas pelos moradores e, sobretudo, por suas lideranças comunitárias.

Segundo Maria Adriana Martins, doutora em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) e professora da rede estadual, ao longo dos anos 1980, “você vai ter vários conjuntos habitacionais nascendo, não inicialmente por vontade governamental, mas porque essas populações se organizaram em mutirões”.

Esses mutirões habitacionais se caracterizavam como um formato de autoconstrução coletiva. Em busca de construir suas próprias casas, famílias se reuniam para reivindicar o direito à moradia digna. “Eles (o governo) dão o material, cedem os terrenos e a própria população nos finais de semana vão construindo as suas moradias”, explica a professora.

Entretanto, Maria Adriana ressalta que apesar da conquista das moradias, a população dos conjuntos também precisou reivindicar melhores condições habitacionais. “A chegada dessa população mais pobre por meio dos conjuntos habitacionais, não veio com a assistência de infraestrutura, de rodoviária, de transporte, de energia. Essas coisas foram conquistadas ‘na marra’ por essa população”.

Na época, o Passaré ainda não era o bairro de hoje. Estabelecimentos como escolas, igrejas, supermercados e outros aparelhos, só chegaram depois, também em razão da iniciativa dos conjuntos.

Crescendo no Passaré

Aos 24 anos, o artista visual e estudante de Filosofia na Uece, Blecaute, relembra sua infância no Conjunto Riacho Doce, no bairro Passaré. Nascido da primeira geração de moradores do conjunto, conta que seus pais chegaram ainda durante as construções das primeiras casas e que cresceu rodeado de vizinhos.

Como boa parte dos meninos, teve a infância marcada pelo futebol, “jogávamos em campos improvisados, em campos grandes, na rua de casa, nas ruas próximas, atrás da igreja, atrás do socioeducativo. Confesso que me recordo com muita saudade e trago comigo as memórias”.

Blecaute relata que, apesar da saudade, a violência interferia diretamente na vida dos moradores do Riacho, sobretudo, dos mais jovens. “Não é raro que o sonho de muitos jovens iguais a mim fosse passar dos 18 anos, talvez por isso o apego ao futebol como essa saída possível”.

Para ele, além do futebol e da religião, o refúgio que procurava encontrou na arte. Durante a infância, observava seus amigos desenhistas se reinventarem em estilos e detalhes, mas que logo abandonaram seus sonhos para lutar por sobrevivência.

“Se pessoas semelhantes a mim, e que são talentosíssimas, tivessem oportunidades e investimentos, talvez mudaria o fato de que quando eu afirmo que sou do Passaré, falarem que é o lugar dos ‘menino bom’”.

A fama, que carrega um teor pejorativo, está associada aos meninos dos centros educacionais Dom Bosco e São Miguel. Registros históricos do O POVO resgatam episódios de motins, mortes e rebeliões dentro dos equipamentos.

Esses casos ajudaram a cristalizar no imaginário da Cidade a associação da violência com o local, reduzindo o bairro a um estigma que ignora suas histórias, afetos e potenciais.

Em suas obras, Blecaute busca ir contra a ideia de que a periferia é apenas espaço de falta e “fabular novos imaginários da população negra no Ceará”. Em sua pesquisa, “Muito mal encarado pra ser Cristo” ele resgata vivências e histórias da infância no Riacho Doce.

“Falo sobre minha familía e amigos, os retratos em minhas obras, os eternizo através da arte, creio que este é um dos meios necessários na luta”. Para ele, ao ocupar museus, marcas e circuitos internacionais sem romper com suas origens, Blecaute reafirma, na prática, que o Conjunto Riacho Doce, e o Passaré, “é o lugar dos menino bom!”