Perna Cabeluda: entenda a lenda urbana de "O Agente Secreto"

Natural de Pernambuco, lenda urbana sobre a "Perna Cabeluda" chegou a Fortaleza durante os anos 1970. Entenda a história e saiba como ela aparece no filme

06:00 | Nov. 17, 2025

Por: Arthur Albano
Kleber Mendonça Filho, diretor de O Agente Secreto, posa com a prótese da Perna Cabeluda utilizada no filme (foto: Divulgação/Daniel Teixeira )

Quem assistir ao novo filme de Kleber Mendonça Filho,O Agente Secreto, lançado no dia 6 de novembro, talvez se espante com um elemento fantástico. É a aparição da “Perna Cabeluda”, lenda urbana pernambucana apresentada pelo diretor de maneira lúdica em cena digna de filme de terror.

Mas de onde veio essa lenda? A seguir, conheça a origem da “Perna Cabeluda”, saiba como a história chegou em Fortaleza e entenda o aparecimento em “O Agente Secreto”.

Perna Cabeluda: conheça a origem da lenda urbana de Pernambuco

É difícil apontar com precisão quando a lenda da Perna Cabeluda surgiu, mas o primeiro registro dela na sociedade pernambucana foi no dia 10 de dezembro de 1975 numa edição d'O Diário de Pernambuco, um dos mais antigos jornais em circulação na América Latina. A manchete era: “Perna fantasma surge em moradia de Tiúma”.

O texto publicado sem assinatura do autor, contava sobre um homem chamado José Luís Borges que havia visto “uma perna caminhar pelas paredes” da casa na qual morava com o filho, Wanderley Borges. Os dois viviam no bairro de Tiúma, em São Lourenço da Mata, a cerca de 50 km de Recife.

Os dois ficaram horrorizados com a aparição e chamaram dois médiuns, um padre e um pastor protestante para afastar o ser, o qual, de acordo com a matéria, causou “um rebuliço no município”.

A história da “Perna fantasma” se arrastou por dias no jornal. Em 11 de dezembro, o periódico publicou uma nota afirmando: “Perna provoca medo, mas padre não ajuda povo”. O texto explicava que o pároco da cidade, padre Ludugero, estava agredindo qualquer fiel que lhe pedisse ajuda sobre o caso.

Um dia após a publicação da primeira notícia, já havia relatos de moradores de outros bairros dizendo ter visto a tal “perna”. Em 13 de dezembro, o jornal publicou uma matéria com a manchete: “Perna fantasma é invenção do povo”.

Até aquele momento, a imprensa chamava a aparição por “Perna Fantasma”. O nome pelo qual ela se popularizou surgiu apenas em 21 de janeiro de 1976.

Foi na edição do dia que Paulo Fernando Craveiro relembrou o caso na sua coluna do Diário de Pernambuco: “Como se já não bastassem as enchentes e as estiagens, o pernambucano toma conhecimento agora da infernal história de uma perna cabeluda que anda por aí amedrontando as pessoas”.

Outros jornalistas como Jota Ferreira, Geraldo Freire e Raimundo Carrero ajudaram a espalhar a lenda em periódicos da época. Freire, apresentador de um rádio jornal, se deparou com a falta de notícias e ligou para Ferreira com o comando: “Tu vai ter que inventar alguma coisa”.

Ao entrar ao vivo, Ferreira afirmou que uma “perna cabeluda” havia atacado uma mulher no bairro de Alto Pascoal. A notícia passou a ser repetida por outros colaboradores da rádio e ganhou força como boato. Apesar disso, Ferreira afirma que a história tem base verídica.

O jornalista explica que ao chegar no pronto-socorro do Hospital da Restauração, encontrou uma mulher ensanguentada afirmando ter sido agredida por uma “perna cabeluda”.

A vítima era uma prostituta que circulava pelas calçadas do Edifício Chanteclair, no Recife Antigo, cuja agressão havia ocorrido na madrugada, no Porto do Recife, um ponto de encontro da boêmia da cidade.

As gravações do programa não foram preservadas, de modo que a história permaneceu sendo repassada por meio da memória dos envolvidos. Ainda assim, Freire e Ferreira são tidos como “pais da lenda da Perna Cabeluda”. Ambos seguem trabalhando como jornalistas, com 76 e 79 anos de idade, respectivamente.

Raimundo Carrero, a outra parte do trio criador da lenda, escreveu sobre a entidade em sua coluna dominical no Diário de Pernambuco, intitulada "Romance Policial", publicada com repercussões sobre notícias recentes.

Em entrevista à revista Piauí, Carrero comentou sobre a lenda associando-a a um “certo tipo de conservadorismo proveniente da ditadura militar”, devido aos ataques estarem sempre atrelados à boêmia de Recife.

Uma curiosidade é que Carrero mantém uma escultura da Perna talhada em madeira, com 40 cm de altura, na sala de seu apartamento localizado em Rosarinho, na zona norte de Recife.

Perna Cabeluda: lenda ficou conhecida em Fortaleza

Em Fortaleza, a memória da Perna Cabeluda surgiu por volta da década de 1970 e alertava para os perigos dessa criatura fantástica cujo hábito seria esperar, no escuro da noite, um transeunte desavisado para aplicar-lhe chutes, sem distinção de gênero ou idade.

“Quando a gente veio morar na Barra do Ceará, e eu tinha mais ou menos 10 anos, surgiu a história de que tinha essa Perna Cabeluda. Eu morria de medo”, contou a professora de Ensino Médio Elizabeth Carvalho ao O POVO em 2007, data de publicação do especial do "Vida&Arte Histórias que o povo conta".

Mas Elizabeth garante não ser só lenda a assustadora perna autônoma repleta de pelos: “Lembro que uma vez, a gente tava na cozinha e eu saí. Eu devia ter uns 15 anos no máximo e vi um vulto passando. Saí correndo, gritando que tinha visto a Perna Cabeluda!”, relembra, aos risos.

Os relatos de aparição da Perna Cabeluda aconteceram nos bairros José Walter e Mondubim, popularizando a história na Capital.

Durante os anos 2000, ela voltou a aparecer no programa do apresentador João Inácio Jr., responsável por apresentar a Perna para uma nova geração.

Segundo João Paulo Reis Braga, doutor em Ciências da Religião e autor do artigo “A Perna Cabeluda: Violência sobrenatural e factual na cidade do Recife”, a lenda se espalhou por João Pessoa, Olinda, Maceió e Fortaleza, sendo quatro cidades com relatos de “vítimas”.

Perna Cabeluda: de quem é o suposto membro fantasma?

No mesmo artigo, Braga discute sobre a origem da lenda procurando entender de quem veio a perna amputada que assombrou Pernambuco. A versão mais provável do dono da “Perna Cabeluda”, segundo ele, é Antônio Raposo Tavares, também conhecido como O Velho.

Bandeirante português, ele visava expandir as fronteiras brasileiras sobre as terras dominadas pelos espanhóis. Para isso, os historiadores dizem que O Velho foi responsável por matar milhares de indígenas e membros de missões jesuíticas

Porém, o que o tornou conhecido foi a maldição lançada sobre ele após ter chutado o rosto de um padre considerado santo. O Velho foi condenado a vagar sobre a terra com quase todo o seu corpo no mundo espiritual, mas com sua perna convertida em carne, sofrendo as chagas do mundo material.

A história é apenas uma das lendas que visam explicar a existência da Perna Cabeluda, vinda de um ciclo da violência contínuo do Brasil Colonial que permanece a assombrar os brasileiros passando pela Ditadura Militar.

O Agente Secreto: como a Perna Cabeluda aparece no filme? Entenda

Lançado no dia 6 de novembro, “O Agente Secreto” é o filme brasileiro mais bem posicionado a ser indicado ao Oscar 2026. Após ganhar o prêmio de Melhor Direção para Kleber Mendonça Filho e Melhor Ator para Wagner Moura, o longa estreia no circuito comercial gerando debates sobre sua trama, a reconstituição histórica e um elemento peculiar.

Escondida nos trailers, mas presente nos materiais de divulgação, a Perna Cabeluda fez uma “participação” na primeira exibição de “O Agente Secreto” no Brasil em 10 de setembro no hall de entrada do Cinema São Luiz, no Recife.

O objeto era um protótipo em silicone de uma perna em tamanho real, pesando cerca de 2 kg e com uma aparência arroxeada e cheia de detalhes de feridas.

Ela protagoniza o momento mais esquisito e sobrenatural de “O Agente Secreto”, até então um drama realista ambientado no Recife de 1977, durante a Ditadura Militar.

O filme conta a história de Marcelo, interpretado por Wagner Moura, um professor cuja pesquisa interessa aos militares. Ameaçado de morte em decorrência de seu trabalho, busca abrigo em um condomínio de refugiados políticos em Recife.

A Perna Cabeluda aparece na trama logo no começo como uma perna amputada encontrada na boca de um tubarão. Embora o filme não explique a quem ela pertence, fica óbvio que os policiais querem se livrar dela, buscando-a no Instituto Médico Legal para descartá-la no rio Capibaribe.

Após ser jogada na água, o filme se distancia da história de Marcelo para um ponto de vista da Perna Cabeluda que cria vida e ataca os transeuntes de uma praça durante a madrugada. O ataque é brutal, deixando pessoas ensanguentadas, enquanto a Perna chuta e ataca de forma aleatória, chegando quebrar o vidro de um carro.

Mesmo sem importância para a trama principal, o momento é um aceno para o restante da filmografia de Kleber Mendonça, que traz elementos sobrenaturais em seus longas para homenagear a cultura de Recife.

O cineasta contou que a primeira lembrança de ter ouvido falar na lenda foi durante sua infância por meio da mãe, a historiadora Joselice Jucá, que leu a reportagem para ele e o irmão durante o café da manhã. O momento foi recriado no longa-metragem, com os exilados lendo sobre o ataque no jornal com muito bom humor.

Questionado pela revista Piauí sobre a presença da Perna Cabeluda no filme, Kleber Mendonça Filho foi enfático: “Um filme americano coloca uma coisa nonsense e ninguém pergunta o que é. Mas no filme brasileiro as pessoas dizem: ‘Eu preciso de uma explicação completa na minha mesa amanhã de manhã.’ Não tenho que explicar nada. O filme está muito claro”.