Como são treinados os cães que farejam drogas
Treinamento de cães da Polícia Militar e Civil envolve genética, socialização precoce e brincadeiras com odor das substâncias ilegais
Você provavelmente já viu cães policiais em ação — seja em aeroportos, rodoviárias, eventos públicos ou operações na rua. Alguns deles se destacam na detecção de drogas, explosivos ou até mesmo em missões de busca e salvamento. Mas como são treinados? E como conseguem farejar substâncias ilegais, mesmo camufladas?
A utilização de cães farejadores pela polícia no Brasil tem história antiga. Desde o início do século passado, eles eram usados para funções básicas de segurança. Com o tempo, passaram a atuar em áreas mais específicas, como detecção de drogas e armas. O uso moderno da cinotecnia — emprego de cães no trabalho policial — se consolidou com a criação de unidades especializadas na Polícia Federal, Força Nacional e Polícias Militares.
No Ceará, a Polícia Militar (PMCE) conta atualmente com cerca de 48 cães, sendo 20 deles farejadores. O Canil da PMCE foi fundado em 1976 e, em 2025, completou 49 anos de existência. Os cães são treinados para localizar drogas, armas, munição e explosivos.
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Do berço ao quartel: como começa o treinamento
Segundo o capitão PMCE Márcio Glayson, subcomandante da 4ª Companhia do Batalhão de Choque da PMCE (BPChoque/PCCÃES), os treinamentos começam cedo: “A socialização dos filhotes e a introdução gradual aos estímulos são essenciais. Cães mais velhos também podem ser treinados, mas o processo é mais difícil devido a vícios comportamentais.”
O processo seletivo leva em conta a predisposição genética: cães descendentes de pais com faro apurado são priorizados. O treinamento tem início entre os seis meses e um ano e meio de idade. Os cães se tornam aptos para atuar após cerca de um ano e meio de preparação e permanecem em atividade até sua aposentadoria. Durante esse período, recebem alimentação reforçada e passam por treinamentos quase diários.
Ele explica que as raças mais utilizadas em operações de detecção e policiamento, no Brasil e em outros países, são o pastor alemão e o pastor belga malinois. "A escolha se justifica pelo porte físico robusto, alta resistência, facilidade de adestramento e energia de sobra para atividades intensas", comenta.
Para o capitão Glayson, o impacto dos cães farejadores na segurança pública vai além da eficiência operacional: “Além do aspecto operacional, os cães também têm um impacto social. Sua presença humaniza o policiamento, facilitando a interação com a comunidade, que muitas vezes se sente mais à vontade para abordar os policiais e fornecer informações sobre atividades criminosas”, afirma.
Como os cães policiais conseguem localizar drogas
Uma das metodologias de treinamento mais eficazes para detecção de substâncias é baseada em associação e brincadeira. O cão não busca a droga em si, mas sim um brinquedo ligado ao odor da substância. Desde filhote, o animal é condicionado a associar esse cheiro ao seu brinquedo favorito, por meio de reforço positivo com comida ou afagos.
No chamado “protocolo de caixas”, por exemplo, diversas caixas são organizadas, com apenas uma contendo a substância (como maconha, cocaína ou pólvora). O cão é solto para farejar, e ao indicar corretamente — geralmente sentando — recebe o brinquedo como recompensa.
O capitão PM Pedro Ribeiro, coordenador do Curso de Especialização em Cinotecnia da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e comandante do Canil Central de Porto Alegre, explica que o foco inicial da formação é no policial, não no cão.
“O canil central é um dos mais antigos do Brasil, com 61 anos. Formamos o profissional que trabalhará com o cão — o adestramento completo é um processo mais longo.”
Na Brigada Militar, os cães são treinados com odores sintéticos, que imitam o cheiro de drogas reais. “Esses materiais evitam o contato direto do cão com drogas adulteradas que circulam nas ruas, como cocaína misturada com fermento ou anestésico, por exemplo”, afirma.
O comandante destaca que o faro dos cães permite isolar odores mesmo em ambientes poluídos ou com interferências, como bagagens fechadas ou pacotes enterrados. A resposta do cão é sempre uma indicação passiva — sentar ou deitar — e nunca morder ou tocar na substância.
“O cão está sempre à procura do brinquedo. Quando identifica o odor associado, ele sinaliza e recebe a recompensa.”
Anatomia do faro: por que os cães farejam tão bem?
O professor Márcio Nogueira, doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP (FMVZ-USP), explica que o faro canino é entre dez mil e 100 mil vezes mais sensível que o humano. Enquanto temos cerca de seis milhões de receptores olfativos, os cães possuem entre 220 e 300 milhões.
“O bulbo olfativo dos cães é proporcionalmente 40 vezes maior que o nosso. E eles ainda contam com o órgão vomeronasal (de Jacobson), que detecta feromônios.”
Segundo ele, a anatomia nasal canina permite que o ar se divida em dois fluxos — um para respiração e outro exclusivamente para análise olfativa. “A mucosa extensa e a habilidade de separar odores misturados tornam o olfato canino uma ferramenta extremamente precisa”, relata.
Cães não detectam a droga em si, mas moléculas específicas associadas a ela, como o benzoato de metila (cocaína) ou pólvora (armas). Essas moléculas são associadas a uma recompensa, reforçando o comportamento.
O doutor acrescenta que o olfato dos cães já é naturalmente apurado, e que o treinamento apenas direciona essa habilidade para finalidades específicas, como a detecção de drogas, explosivos ou até mesmo doenças. Para se ter uma ideia do alcance desse sentido, uma pesquisa realizada na Escola Superior de Medicina Veterinária de Hannover, na Alemanha, apontou que cães farejadores são capazes de identificar o novo coronavírus com uma precisão de cerca de 94%.
Mais do que um cão: vínculo entre policial e parceiro
O policial geralmente acompanha o cão desde os 50 dias de vida até sua aposentadoria, por volta dos oito anos. O relacionamento é próximo. “O cão passa a fazer parte da vida do policial e vice-versa. O vínculo é essencial e começa já no curso de formação”, explica o capitão Glayson.
Essa convivência permite ao agente identificar o estado emocional do cão apenas pelo olhar — se está cansado, animado ou em alerta. Durante operações, são levados dois cães por precaução: se um estiver cansado ou errar, o outro pode confirmar a busca.
O treinador também acompanha o desempenho diário do cão, observando sinais de exaustão ou alteração de comportamento, o que ajuda a manter a alta taxa de acerto nas buscas e garantir o bem-estar do animal.