Participamos do

‘Blackface": entenda porque a prática é considerada racista

A prática começou em meados de 1830 e era utilizada para ridicularizar características de pessoas negras, como a cor da pele, o nariz e a boca

Com o rosto pintado, maquiagem para aumentar os lábios exageradamente, próteses no nariz e uma peruca, foi assim que o humorista Carioca gravou uma paródia exibida em rede nacional na semana passada, na "A Fazenda 12". Nas redes sociais, um termo se destacou: “blackface”, ou cara preta, em tradução livre. A prática, que começou no teatro de rua nos Estados Unidos, é considerada como forma de violência simbólica do racismo e gera debates sobre como e porque acontece.

A graxa de sapato, tinta de graxa ou cortiça queimada, além da tinta em lábios ampliados e outras características exageradas, remota à Nova York em meados de 1830. Thomas Dartmouth Rice, ator nascido na cidade, é considerado o "Pai de Minstrelsy", um tipo de espetáculo teatral popular tipicamente americano que usava da prática do blackface. Segundo estudiosos, após uma viagem para o Sul dos Estados Unidos, ele observou escravos, e começou a incluir em sua apresentações trejeitos. A partir dai, ele desenvolveu um personagem de palco negro chamado "Jim Crow", em 1830.

LEIA MAIS: Professor de medicina usa "Blackface" para ensinar alunos a como conversar com pacientes pobres

Seja assinante O POVO+

Tenha acesso a todos os conteúdos exclusivos, colunistas, acessos ilimitados e descontos em lojas, farmácias e muito mais.

Assine

Os movimentos rápidos de dança, um comportamento exagerado e espalhafatoso ilustravam comportamentos que os brancos associavam aos negros. A criação do personagem também estabeleceu um novo gênero de música racializada e dança que se tornou central para o entretenimento americano no norte e sul do país. “ Por onde ele passava atraia um público. Com o tempo, passaram a ser trupes de blackface com 30 ou 40 pessoas atores nesse tipo de espetáculo. Era enfiando a boca inteira em uma melancia, ou era sendo hipersexualizado ou roubando melancia das plantações”, explica o cineasta negro, Déo Cardoso. Mas não só nos Estados Unidos a prática ficou comum, foi avançando em outras mídias e países. No Reino Unido, “The Black and White Minstrel Show”, era extremamente popular, com uma audiência que chegou a atingir 16 milhões de pessoas entre 1958 e 1978.

Clique na imagem para abrir a galeria

Cardoso explica que, mesmo tendo seu declínio por volta de 1920, foi sendo absorvida por uma indústria ainda mais comercial: a cinematográfica. Ele marca alguns pontos significativos do uso do blackface no cinema. Em 1915, o filme de sucesso “O Nascimento de uma Nação”, apresentava personagens de blackface que eram vistos como inescrupulosos e estupradores. A influência e popularidade na época foi usada como uma ferramenta de recrutamento para a Ku Klu Klan, movimento que defende a supremacia branca.

Além dele, em 1927, Al Jolson se tornou uma das estrelas mais influentes do século XX, incluindo seu filme de sucesso de The Jazz Singer, considerado como o primeiro longa com falas e canto sincronizado a um disco. Em 1941, chegou aos cinemas a animação Dumbo, que segundo o cineasta, também reforça estereótipos afrodescendentes nos trejeitos dos corvos. “ Próprio Mickey Mouse, na sua forma original, ele tinha o corpinho todo preto, quando surgiu nos anos 20, era serelepe, falava diferente e tinha partes branca perto do lábios, como era comum no artistas de blackface”, explica ele. Mesmo com a cara pintada, os artistas deixavam uma parte branca, próximo aos olhos e a boca, além dos lábios maiores e, geralmente, vermelhos. A forma de falar, mais puxada, também entrou na forma da prática do blackface.

O ponto, segundo o cineasta, é que a prática nasceu para ridicularizar e debochar e passam a ser usados como forma de violência simbólica. Na época da criação da prática, as legislaturas segregativas aprovavam "códigos negros", também eram chamados de leis "Jim Crow, visto como forma de restringir comportamento negativos associados a ex-escravos e a outros afro-americanos. Hoje, a manutenção dos estereótipos vai rodeando o imaginário popular. “ Isso traz um estigma, é passar a ser visto como um tipo, você bate o olho nessa pessoa e sabe dela.[...] . A gente vira uma coisa e não um ser humano múltiplo como devemos ser visto”, opina.

Clique na imagem para abrir a galeria

No Brasil, em sua análise, o movimento também aconteceu, embora de forma menor, mas mesmo assim repercutiu, não só na comédia, como também na hipersexualização na música e no cinema. “O estereótipo da mulata sensual, a personagem “a nega maluca”, o negão, como símbolo sexual ou predador sexual ,existe ainda esse fetiche, muitas vezes associado ao estuprador,” comenta ele. Hilário Ferreira, professor e pesquisador da história e cultura negra no Ceará, aponta a prática na novela “A Cabana do Pai Tomás”, exibida pela Globo entre julho de 1969 e fevereiro de 1970. A obra retratava a história de uma família negra que lutava contra a escravidão nos Estados Unidos, mas tinha como protagonista um ator branco, Sérgio Cardoso(1925-1972).

Segundo ele, a blackface também esconde outro problema: a baixa participação de pessoas negras nos ambientes artísticos. Porque, em vez de chamar uma pessoa negra para o papel, uma pessoa branca interpretava o papel. “É como o racismo estrutural funciona. É preciso ir galgando espaços e os números (de atores) dentro das novelas. Além do tipo de participações. Antes se limitavam em papeis como empregados ou escravos. Isso já vem se alterando e temos outros papéis, em que eles possuem outras profissões, uma ligação afetiva com outros personagens e sua própria família.

Como lidar

Hilário explica que é preciso estabelecer que é um tipo de violência do racismo estrutural, é a razão pela qual a pessoa pratica, mesmo não sabendo. “ É criar espaço para o debate sobre isso, onde as pessoas possam perceber que isso é uma violência, e que ele consegue intervir nas relações interpessoais, é combater essa naturalização dessas violências, que muitos acham besteira”, ressalta ele. “ Pode parecer simples, mas é uma formas de poder e dominação e tem um efeito negativo. [Os debates] passam a romper com isso, é mostrar que não é uma beleza não é superior, é uma beleza diferente”, comenta.

Nessa mão, o cineasta Déo Cardoso opina que é preciso abrir uma margem para o diálogo e a explicação no primeiro momento, com uma repreensão educativa. “ A gente precisa pensar nessa cultura do cancelamento. É bom que seja explicado sobre o racismo. Ele sendo cancelado, pode ficar estressado e revoltado e passar a praticar de forma proposital. Porque existe a diferença no racismo estrutural que você vai perpetuando e racismo de ódio, que a pessoa sabe que está sendo racista”, comenta.

Confira as sugestões dos especialistas sobre o tema:

Livro

O Negro Brasileiro e o Cinema, de João Carlos Rodrigues

Documentário

A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo. A produção pode ser vista aqui.

Dúvidas, Críticas e Sugestões? Fale com a gente

Tags

Os cookies nos ajudam a administrar este site. Ao usar nosso site, você concorda com nosso uso de cookies. Política de privacidade

Aceitar