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Empresas poderão "herdar" serviço público sem licitação

2017-12-26 01:30:00

Está pronta na Casa Civil e prestes a ser editada medida provisória que promove as mais profundas mudanças nos serviços de água e esgoto no Brasil em mais de 40 anos. Mexe na Lei do Saneamento Básico, com impactos profundos para os referidos serviços.

 

Tomemos o caso de uma empresa pública que tenha concessão do serviço de água e esgoto em determinado município. Por exemplo, a Cagece em Fortaleza. Pela lei atual, se essa empresa é privatizada, o contrato público é rescindido.

 

Afinal, a dispensa de licitação ocorreu porque a empresa é estatal. Se ela sai do controle público, a concessão de serviço público passa a exigir concorrência. Ainda mais em serviço essencial, do qual toda a população é cliente - ou deveria ser.

 

A lei muda isso. Passa a ser possível preservar o contrato público, obtido sem licitação, para empresa que não é mais estatal. O serviço essencial, conquistado sem concorrência, pode ser vendido à iniciativa privada. Torna-se um ativo a deixar mais atraente a venda das companhias.

 

Ora, na série de escândalos que tem ocorrido no Brasil, o aspecto central são as manobras de empresas privadas para assumir o controle de contratos públicos. No caso de algo tão primordial quanto água e esgoto, isso passa a ser facilitado e previsto em lei, a partir da MP.

 

A prestação de serviços de água e esgoto é maior e mais importante que as empresas concessionárias que os controlam. Porém, é tratada na medida provisória como um dos ativos para valorizar as estatais.


Não fica por aí.

 

A SEPARAÇÃO ENTRE O “OSSO” E O ‘FILÉ”


A prestação dos serviços de saneamento funciona no modelo de subsídio cruzado. A população de Fortaleza paga para custear o próprio serviço, por óbvio, mas também para que a população de Ererê, por exemplo, possa ser atendida. A Capital e os grandes municípios têm mais renda, maior capacidade de contribuir. Municípios pobres e pouco populosos não têm porte para arcar com a cara infraestrutura demandada. No Ceará, a Região Metropolitana de Fortaleza acaba arcando com os custos do Estado todo.

 

Isso ocorre em outras áreas. Por exemplo, concessão de serviços de ônibus, em diferentes formatos, condiciona a circulação em áreas de maior demanda à presença também onde a demanda é menor. A razão é evidente: se não for assim, só vai ter ônibus nos locais de maior fluxo, deixando populações desassistidas. Sob gestão estatal ou privada, os serviços são públicos e o interesse é coletivo. No caso da água, porém, a medida provisória coloca esse modelo em risco.

 

Atualmente, empresas estatais podem ter contratos de concessão renovados pelas prefeituras sem necessidade de licitação. Pelo texto da MP, ao se encerrarem os atuais contratos, deverá haver chamada pública para saber se há interessados. Se houver, será obrigatória a realização de licitação. Qual o problema? A desvinculação dos serviços.

 

Em Fortaleza ou Caucaia, obviamente haverá interessados em assumir a prestação. Em Potiretama, Tarrafas ou Arneiroz, tenho sérias dúvidas. Sabe o que vai acontecer? O setor público terá de atender esses municípios. Mas, agora sem mais contar com a retaguarda dos maiores municípios para subsídio cruzado.

 

Ah, mas a estatal pode disputar o contrato na Capital, por exemplo. É verdade. Porém, não será competitiva caso preveja tarifa para subsidiar o Interior. Se for assim, perde a licitação para o ente privado, que propõe valor unicamente para manter Fortaleza.

 

A medida provisória induz a privatização dos serviços nos grandes centros. As estatais nem precisam ser vendidas. Elas serão esvaziadas. Isso criará problema para as contas públicas. O Estado acabará tendo de arcar com o subsídio para que o Interior tenha água e esgoto. Isso ou os pequenos municípios terão os mais básicos serviços inviabilizados.

 

O modelo chega a ser muito pior do que seria privatizar o conjunto dos serviços de água e esgoto. Entregar ao concessionário privado o conjunto da rede atendida pelas estatais seria melhor do que permitir que eles escolham apenas as partes mais vantajosas, deixando como problema dos governos os locais onde a prestação é deficitária.

 

O MODELO DE MUDANÇA


Tamanha alteração de modelo em serviço essencial é feita por medida provisória. O assunto foi articulado na surdina. Atende interesse, óbvio, das empresas privadas. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também é favorável, interessado em financiar as operações de aquisição dos serviços e/ou das estatais.

 

A MP só não foi editada ainda porque Bruno Araújo (PSDB) saiu do Ministério das Cidades, em novembro. Há expectativa de que seja encaminhada em breve.


O modelo chega a ser muito pior do que seria privatizar o conjunto dos serviços de água e esgoto

Érico Firmo

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