Mulher morre após tratamento com cloroquina nebulizada e médica é demitida

A família não foi consultada antes de a paciente liberar o procedimento, que não tem autorização prévia no Brasil. Medicamento é considerado ineficaz pela OMS

A técnica em radiologia Jucicleia de Sousa Lira, 33, morreu em Manaus após receber um tratamento experimental contra a Covid-19, a nebulização de hidroxicoloroquina. A família não foi consultada antes de a paciente concordar com o procedimento, que não tem autorização prévia no Brasil. As informações são da Folha de S. Paulo. A médica que aplicou o procedimento foi demitida.

Em fevereiro, Jucicleia estava em estado grave em decorrência do coronavírus no hospital público Instituto da Mulher e Maternidade Dona Lindu (IMDL), dias após um parto de emergência. Ela recebeu a técnica realizada com a hidroxicoloroquina, medicamento ineficaz contra o coronavírus que pode gerar reações adversas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Seja assinante O POVO+

Tenha acesso a todos os conteúdos exclusivos, colunistas, acessos ilimitados e descontos em lojas, farmácias e muito mais.

Assine

Depois da nebulização, Jucicleia continuou piorando e morreu no dia 2 março, 27 dias após o nascimento do filho único. A causa foi infecção generalizada em decorrência da Covid-19, segundo o hospital informou.

A responsável pela nebulização da hidroxicloroquina é a ginecologista e obstetra paulistana Michelle Chechter. Ela atuou em Manaus com o marido, o também médico Gustavo Maximiliano Dutra. O esposo de Jucicleia, Kleison Oliveira da Silva, 30, diz que a médica não o consultou sobre a nebulização. Ele só tomou conhecimento que a esposa havia assinado uma autorização por meio da Folha de S.Paulo, em 8 de abril.

O texto tem três parágrafos curtos com erros gramaticais e de grafia. Com sua assinatura, a paciente concorda que a médica utilize a “técnica experimental nebuhcq líquido, desenvolvida pelo dr. Zelenko”. Além disso, ela autoriza o uso do depoimento gravado na UTI e o relato do caso em uma revista científica.

Além de Jucicleia, apenas outra paciente, também puérpera, assinou a autorização para uso de nebulização. Ela sobreviveu, mas só recebeu alta quase dois meses após ter passado pelo procedimento. Segundo a reportagem da Folha, pelo menos outras três pacientes receberam nebulização em Manaus mesmo sem terem autorizado. Todas morreram. 

A morte de Jucicleia não impediu que o vídeo gravado pela médica Michelle Chechter continue circulando até hoje na internet. Nas imagens, a mulher aparece sorridente durante a sessão de nebulização. 

Um dos que mais contribuíram para a propagação do vídeo foi o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni (DEM). Ele publicou o vídeo no Twitter 18 dias após a morte de Jucicleia e, até domingo, 11, a gravação havia sido visualizada 132,5 mil vezes.

"A pessoa que vê o vídeo pensa que a minha esposa está curada, mas não é verdade. Ela faleceu. É um profundo desrespeito", lamenta Kleison, que agora divide tempo entre trabalhar e cuidar do filho.

 

Tratamento experimental e irregularidades

 

A nebulização de hidroxicoloroquina consiste na inalação de comprimidos de cloroquina macerados e diluídos. A técnica foi criada pelo médico ucraniano-americano Vladimir Zelenko. Ele ficou conhecido em março de 2020, quando sua defesa do uso da cloroquina contra a Covid-19 foi encampada pelo então presidente Donald Trump, de forma semelhante ao que ocorreria no Brasil por meio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em abril do ano passado, Zelenko se tornou alvo de uma investigação preliminar de um procurador federal por ter mentido que seu estudo havia recebido o respaldo da Food and Drug Administration (FDA), a agência norte-americana que regula medicamentos.

A prática não tem aprovação prévia por um comitê de ética em pesquisa, exigência legal no Brasil. Outro problema é que, na autorização apresentada à Jucicleia, ela não foi informada sobre os riscos, conforme as normas brasileiras do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Após tentativa de contato da reportagem, uma funcionária da obstetra paulistana Michelle Chechter respondeu que a médica estava "sem tempo".

De acordo com a OMS, a hidroxicloroquina oferece risco adicional para mulheres grávidas. "Embora a hidroxicloroquina tenha sido usada em gestantes com doenças autoimunes sistêmicas, como o lúpus eritematoso sistêmico, grávidas podem ter ainda mais razões para relutar em usar hidroxicloroquina para profilaxia de Covid-19”, diz a instituição.

LEIA TAMBÉM | De perdas evitáveis a berçários lotados: o cenário da Covid-19 entre gestantes no Ceará

+Especialistas recomendam avaliação individual para vacinação de gestantes

Secretaria de Saúde

 

A Secretaria de Saúde de Manaus se eximiu de culpa pela aplicação de nebulização em seu hospital, informando que o tratamento não faz parte dos protocolos terapêuticos da rede estadual e que "se tratou de um ato médico, de livre iniciativa da profissional [Chechter], que não faz mais parte do quadro da maternidade, onde atuou por cinco dias”.

A pasta afirma que apenas duas pacientes foram submetidas ao tratamento. Ambas “assinaram termo de consentimento”, e as informações sobre o atendimento estariam registradas em prontuário. A pasta não respondeu se a médica e o marido foram denunciados, se a morte de Jucicleia tem relação com a nebulização ou quantos pacientes receberam hidroxicloroquina em comprimidos administrados pelo casal.

O presidente do Conselho Regional de Medicina do Amazonas, Emanuel Jorge Akel, não atendeu a reportagem.

 

 


Dúvidas, Críticas e Sugestões? Fale com a gente

Tags

nebulização de hidroxicoloroquina manaus tratamento experimental manaus cloroquina manaus

Os cookies nos ajudam a administrar este site. Ao usar nosso site, você concorda com nosso uso de cookies. Política de privacidade

Aceitar