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VERSÃO IMPRESSA

Sobre imprensa e democracia

2017-02-04 17:00:00
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Com o PT no poder, uma das críticas mais contundentes da esquerda era dirigido à imprensa, considerada “um partido de oposição”. Nos Estados Unidos, Stephen Bannon, um dos principais assessores do presidente Donald Trump também comparou a mídia a um “partido de oposição” e aconselhou a imprensa a “calar a boca”. Como se observa, a crítica que a esquerda e a direita mais extrema fazem à mídia é a mesma.
 

Mas por que a direita e a esquerda se igualam em críticas exacerbadas aos meios de comunicação? Possivelmente porque alguns setores da esquerda têm o mesmo viés autoritário que a pior direita - ambos querem um mundo à sua imagem e semelhança.
 

Já escrevi, mais de uma vez, que os jornais merecem boa parte das críticas que lhes fazem, porém, existe um limite da crítica à imprensa. Esse limite é o mesmo que vale para as críticas à democracia, que não pode chegar ao paroxismo de pedir a sua destruição ou considerá-la imprestável. Nos regimes autoritários - à esquerda e à direita -, não existe liberdade de imprensa, porque esta só existe na democracia. De outro modo, somente onde existe
democracia é possível a liberdade de imprensa. São duas coisas indissociáveis.
 

Os jornais, mais do que nunca, precisam ser preservados, principalmente nesses tempos de “pós-verdade”, nos quais a crença pessoal vale mais do que os fatos para os partidários de uma ou outra causa. A imprensa é um certificador dos fatos e, por pior que seja, não lhe interessa trombar com a realidade, pois transformar os fatos em notícias verazes está na essência de seu negócio.
 

É também de acadêmicos de esquerda a afirmativa que imprensa publica apenas um “recorte da realidade” e que, portanto, a “verdade” seria inalcançável, pois sempre haveria outra versão dos fatos, de acordo com o observador. Concordo se se tratasse de filosofia, pois estaríamos tratando da verdade escatológica. Mas o caso aqui é jornalismo, portanto, falamos da verdade factual.
 

De resto, tudo o que vivemos é um “recorte da realidade”: quem consegue tudo absorver de determinado contexto, sem nenhum tipo de filtro (pode chamar de “edição”) serão somente Deus (se ele existir), alguns loucos e os savants. Para as pessoas comuns, incluindo jornalistas, só resta a possibilidade de apreender um “recorte da realidade, o que não quer dizer que seja mentira. Em qualquer fato, existe um núcleo duro que o jornalista treinado saberá identificá-lo e reproduzi-lo corretamente em
forma de notícia.
 

Agora vejam se Donald Trump não estudou em escola parecida. Depois de ter falseado o número de espectadores na sua cerimônia de posse; de acusar os meios de comunicação de terem inventado uma polêmica com a CIA e de repetir que foi contra a guerra do Iraque desde o início - quando registros mostram que ele se posicionou bem depois do início do conflito - conselheira da Casa Branca, Kellyanne Conway, disse que o governo podia lançar mão de “fatos alternativos” para analisar a realidade. O problema é que “fatos alternativos” são sinônimo de mentira.
 

O grande valor da imprensa tradicional, por mais “governista” ou “partido de oposição” que seja, é que ela não pode tomar esse caminho, no que diz respeito à verdade factual. E isso, nos tempos que correm - apresentar os fatos como eles são -, é de valor inestimável, chega a ser revolucionário. E essa função tem de ser preservada, pelo bem da democracia e da liberdade.
 

Fato e opinião “Você tem direito às suas próprias opiniões, mas não tem direito a seus próprios fatos.” Daniel Patrick Moynihan (1927-2003), senador americano.

1984/1948

Depois da declaração da conselheira Kellyanne Conway sobre os “fatos alternativos”, o livro “1984” de George Orwell (publicado em 1948) voltou à lista dos mais vendidos nos Estados Unidos. A obra aborda o regime despótico do “Grande Irmão”, que controla a população distorcendo a linguagem e alterando constantemente a versão dos fatos.

Adriano Nogueira

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