Jia Zhangke e Walter Salles atravessam a China com fantasia e saudade
Aclamado cineasta chinês, Jia Zhangke olha para a própria obra para entender as mudanças sociais e tecnológicas. O filme chega aos cinemas em conjunto com um documentário de Walter Salles
Presos ao presente, não costumamos pensar insistentemente em como todos os filmes são máquinas do tempo muito autênticas no compromisso nato à ideia de se produzir imagens, sejam elas reais ou fictícias. Ainda mais aprisionados ao Ocidente, não somos levados a imaginar qualquer memória coletiva sobre sociedades distantes da mídia. Veja só: sabemos quase nada sobre como as profundas mudanças sociais deste tempo alcançaram a China.
Foi a partir dessas discussões que Jia Zhangke decidiu olhar para sua própria obra no cinema como forma de olhar também para sua terra natal, um país de dimensão e população continental, que foi tomando grande protagonismo no cenário global socioeconômico e tecnológico.
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Estreando no 77º Festival de Cannes e exibido em seguida na 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, “Levado pelas Marés” finalmente chegou aos cinemas brasileiros na última quinta-feira, 19. Em algumas cidades, entrou em cartaz junto a um documentário lançado 10 anos antes, “Jia Zhangke, Um Homem de Fenyang”, dirigido por Walter Salles ("Ainda Estou Aqui", "Central do Brasil").
O brasileiro faz um retrato afetivo do cineasta ao levá-lo de volta aos locais onde rodou parte dos seus filmes.
Numa jornada experimental que rima com sua própria filmografia ao intercalar real e ficção no trajeto de um século que anda na velocidade da luz, “Levado Pelas Marés” viaja de 2001 até 2022 enquanto Qiaoqiao (Tao Zhao) peregrina atrás de um amor perdido. Do lado de cá, nós vamos entendendo o peso das coisas que mudam.
O filme começa com um lindo momento de descontração entre amigas sorridentes que ficam desafiando umas às outras a cantar. Ao longo de suas quase duas horas, a música e a dança são quase que personagens com vida própria – em dado momento, a câmera conversa com o dono de um antigo salão que narra sua experiência entre a origem festiva daquele lugar e seu destino silencioso e solitário.
Jia balança realidade, sonho e fantasia de forma que elas nunca parecem competir entre si, mesmo com distâncias e montagem às vezes bruscas. Apesar da melancolia que é ver o mundo deste século mudar do coletivo para o individual, este também consegue ser um filme alegre de nostalgia imediata, como se aquelas memórias de um mundo tão distante também nos pertencessem.
Seu desfecho, no entanto, é bem menos otimista quando olha para esse futuro de hoje e vê as inteligências artificiais avançando para sintetizar o que nós pensamos ao invés de nos fazer ir adiante, de fato, nos deixando tolos e cada vez mais sozinhos.
Em 2020, Zhangke também falou disso à partir da tragédia: o curta “Visita” apresenta dois amigos que se reúnem, em plena pandemia do coronavírus, para assistirem a um filme.
De máscaras, banhados em álcool e distanciados, assistem a projeção de milhares de pessoas aglomeradas num movimento que lembra um oceano pulsante. Diante de um mundo que se desfaz, o cineasta já estava sendo levado pelas marés… Será que ainda vamos fugir ou já afundamos de vez?
Em Fortaleza, “Levado Pelas Marés” está em cartaz no Cinema do Dragão e ainda não há previsão para a reestreia de “Jia Zhangke, Um Homem de Fenyang”.