Estadual de rimas do Ceará define representante no Nacional

Duelo de MC's consagra Snart como representante nacional

Campeonato estadual de rimas reúne MC's de todo o Estado e consagra o campeão que irá para o Duelo de MC's Nacional, em Belo Horizonte

Quem passou próximo à Praça da Lagoa da Parangaba no sábado, 27, deve ter observado um movimento diferente. Nos arredores da lagoa, perto das bancas de lanches e do pequeno espaço infantil, que já fazem parte da rotina da praça, um palco com luzes e algumas caixas de som passaram a compor o cenário. Se você era um transeunte curioso para saber do que se tratava, a resposta estava em um grito. “E o que acontece aqui?”, perguntavam os apresentadores ao som do beat do DJ Xarada. E a plateia respondia: “Duelo de MC's!”.

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Naquele palco, 16 MC's viviam o sonho de rimar no Estadual Ceará, maior evento de batalha de rima do nosso estado. Dividido em 1ª e 2ª fases, semifinal e final, o campeonato consagrou Snart como vencedor.

Em novembro, o novo campeão estadual vai representar o Ceará no Duelo de MC's Nacional, em Belo Horizonte. Da Praça da Lagoa da Parangaba para o viaduto Santa Tereza, o fortalezense vai competir pelo título mais cobiçado pelos MC's de batalha de rima do Brasil.

Além de Snart, os MCs Clauber, Martin, Star, XP, Twoel, Iviz, Caveira, Lan, Nogtz, KN, Sequência, Barnabé, MT, Dantaz e MCharles – o campeão nacional de 2019 – fizeram o espetáculo do improviso acontecer. Classificados por seletivas regionais, eles conquistaram a vaga representando diversos municípios do Estado.

Além de Fortaleza, teve Aquiraz, Caucaia, Eusébio, Maracanaú, Itapipoca, Horizonte, Itarema, Juazeiro do Norte e Sobral marcando presença na competição.

 

“Ganhar um estadual é uma mudança de carreira, uma mudança de respaldo para um MC”, afirma SkePz, presidente da equipe de produção do Estadual CE.

Por trás dos palcos, uma equipe de oito pessoas trabalha para que o evento ocorra anualmente. Passados poucos dias do Estadual CE 2025, eles já estão se planejando para a edição de 2026.

“É um corre independente onde todo ano a gente tem que se reinventar para poder fazer acontecer”, conta Diniz, coordenador do estadual e fundador da Batalha da Cascavel, em Juazeiro do Norte.

Dispondo até de recursos próprios para realizar o evento, a equipe se desdobra em busca do apoio de empresas e fomento público a cada ano. “A gente paga para o evento acontecer, porque a gente é apaixonado no projeto”, declara Diniz.

Uma chave, 16 sonhos

“Tem muito incentivo do governo à cultura que não chega até nós, muito em função de burocracia, muito em função da marginalização da cultura”, aponta o produtor. Se ano passado a Família de Rua, responsável pelo Duelo de MC's Nacional, pôde oferecer apoio financeiro, este ano os recursos foram mais limitados. Como os produtores buscam encarar os problemas com soluções, em vez dos shows de Zioto e Rapadura que conseguiram incrementar na programação de 2024, eles fizeram uma "open battle".

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“É o sonho de muito MC, inclusive o meu, de pisar no palco do Estadual pra rimar”, pontua Diniz. Sendo assim, eles democratizaram o espaço para que os artistas que não se classificaram para a competição pudessem participar do evento como MC's. O Estadual 2025 também se destacou pela presença de Star MC, de Fortaleza.

Única mulher a competir pelo título este ano, ela foi a primeira MC a ser classificada para o campeonato por meio de uma seletiva inclusiva. “Eu acho que é uma grande conquista do hip-hop do Ceará, a seletiva inclusiva”, destaca Diniz, que também pontua a representatividade feminina e LGBTQIAP+ na equipe de produção do Estadual.

“A gente tá quebrando certos paradigmas que a gente encontra, tentando deixar o negócio mais equilibrado. Menos homofófico, menos misógino”, comenta o coordenador do Estadual. Ele também conta que as seletivas do campeonato contam com 25% das vagas reservadas para mulheres e pessoas LGBTQIAP+. “Se a gente ficar nessa de ‘só homem rima, só homem vai pro Estadual’, a gente acaba calando várias vozes”, defende.

Outra prioridade para o evento é a descentralização. Conseguir alcançar as batalhas para além de Fortaleza é um desafio que vem sendo encarado pela produção do Estadual CE. “Esse ano a gente conseguiu incluir as regiões de Itarema e Itapipoca no processo seletivo. Acho que eram as únicas duas regiões que não tinha, comparado ao ano passado”, conta SkePz, presidente do Estadual CE.

 

“A gente tá estudando uma forma de cada vez mais abranger a questão do processo seletivo para todo o estado do Ceará. A maior preocupação da gente é essa”, complementa Diniz, que considera o Estadual como a culminância da cena, formada por cada uma das batalhas espalhadas pelo Estado. No longo processo de produção do Estadual, as 16 melhores batalhas são selecionadas para realizar as seletivas para o Regional. A partir do ranking de cada batalha, são selecionados os MCs que vão competir.

Os campeões de cada Regional garantem a vaga no Estadual. A exemplo dos MC's Tonhão e Mandacaru, “várias pessoas que agora tão vivendo de rima, que são do Ceará, tiveram as portas abertas pelo Estadual”, afirma SkePz. Para ele, o evento funciona como uma ponte entre o Ceará e o eixo Rio-São Paulo, onde se concentram as maiores batalhas e as oportunidades de seguir carreira como MC de batalha de rima. “O suprassumo do MC do Ceará, de qualquer cidade que seja, é ganhar o estadual de rimas pra poder aparecer pro eixo”, expõe.

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“É você se destacar nas batalhas das suas áreas, conseguir ir para o Estadual, ganhar o Estadual, conseguir ir para o Nacional, conseguir se destacar no Nacional pra poder ser convidado para as batalhas de São Paulo”, explica Diniz sobre o caminho que os MC's cearenses buscam trilhar. “O meu propósito enquanto produtor de batalha de rima é que isso mude”, manifesta.

“A gente sempre tenta se aproximar todo ano um pouco mais de como é que está acontecendo a realidade da organização dessas localidades”, aponta o coordenador da produção do Estadual sobre a cena das batalhas de rima no eixo, visando a profissionalização da cena também no Ceará.

“Tem MC que cola numa batalha, gasta R$ 50 de transporte pra chegar, faz a apresentação dele, às vezes ele dá um azar e perde na primeira fase. Às vezes nem sai no sorteio, aí ele fez um espetáculo ali para a plateia e não ganha nada”, descreve Diniz. Na perspectiva de SkePz, esse cenário impacta no nível de rima e desempenho dos MC's. “Batalha de rima é igual a futebol. Se você não treinar todos os dias, você deixa de ter uma chance”, sustenta.

Ele cita Snart como um dos artistas que conciliam um emprego formal com o freestyle. Em muitos casos, o cenário força a profissão a ser tratada como hobby. “A quantidade de MC's que poderiam estar nesse mesmo nível não está batendo com a realidade. Poderíamos ter muito mais MC's com esse nível em relação às batalhas de fora do Estado”, pondera SkePz.

“A gente tá correndo atrás de grana justamente pra resolver esse problema e ver se a gente consegue injetar uma grana nas batalhas daqui, pros MC's terem um mínimo de dignidade de colar num evento e receber um cachê”, prospecta Diniz, que compartilha planos de conseguir fomento de editais públicos voltados para a cultura ainda em 2025 para modificar o cenário, fazendo-o chegar o mais próximo possível do que eles, que vivem a cena cotidianamente, consideram ideal.

Snart: Há um urso nas ruas de Fortal

No call center de um banco, com fones no ouvido e a tela azul piscando cobranças, ele é Cauã Ribeiro, de 21 anos. De dia, a voz é treinada para repetir protocolos, persuadir desconhecidos e negociar as dívidas alheias. Precisa falar leve, pausado, com cuidado. Tem se acostumado a essa realidade.

Ao fim do expediente, a pausa vira um sonho e o mesmo jovem vaga pelas rodas culturais da Cidade carregando outra identidade: Snart, o “Urso de Fortal”, que passa longe de ter a mesma suavidade de quando está no telemarketing. A voz parece sair do coração e não conhecer limites. Fica mais alta e grave, parece flutuar nos beats agressivos.

“Urso” virou seu apelido porque ele aprendeu a se proteger, a andar sozinho quando era preciso. Com o microfone, aprendeu a rugir, a impor seu tom e seu discurso. Não quer que ninguém diga que ele não consegue, principalmente em sua toca.

“De Fortal” porque nasceu na capital alencarina e daqui nunca quis sair em definitivo, mesmo sonhando em conquistar o Brasil afora. Não quer levar Fortaleza ao eixo, mas o contrário, como já disse em rima. A semelhança da presença de palco e a facilidade em surfar nos beats de drill (caraterizado por batidas fortes e letras agressivas) como o cantor Major RD fortaleceram o apelido.

O apelido animal, que parecia piada íntima com os MCs mais próximos, virou grito de torcida e "marca registrada". Na Praça da Lagoa da Parangaba, Snart estava em modo de caça e venceu todas as batalhas por twolala (dois rounds a zero) — ou seja, sem perder sequer um único round em todo o Estadual.

Eliminou os adversários XP, Iviz e Barnabé para chegar à final. No percurso, levou o público à loucura com "punchlines" ("Linhas de soco", na tradução literal. Referencia rimas de impacto no round, que somam mais pontos), "flows" (a "levada" em que o rapper encaixa suas palavras e rimas) e encaixadas no beat (batida, ritmo). Falou da própria trajetória, das suas inspirações, rebateu argumentos de favoritismo. No fim, era favorito, mas até por isso almejava, por já ter sido tão visto como zebra em outros momentos.

Após as três fases, estava enfim na última batalha do Duelo Estadual de MCs — que disputou outras três vezes e nunca havia chegado tão longe. Do outro lado estava MCharles, seu ídolo e referência, o cearense que um dia venceu o Brasil inteiro no freestyle, superando uma chave de 32 MC’s, e fincando a bandeira do Ceará em Belo Horizonte, no principal palco do freestyle do País.

Por cinco anos, Cauã imaginou esse encontro, assim como já se imaginou rimando no viaduto de Santa Tereza, em BH, assim como MCharles. Quando a chance chegou, a emoção quase o derrubou antes de subir no palco da batalha decisiva: derramou muitas lágrimas escondido, por baixo dos óculos escuro, como se não quisesse que ninguém visse o Cauã. Era a batalha de uma vida toda.

Mesmo assim, subiu no palco. A expressão era de confiança, como se os segundos anteriores não tivessem existido. Estava no bairro em que se sente em casa, no bairro da Cururu Skate & Rap, onde já perdeu a conta de quantas "folhinhas" (folha com o chaveamento da batalha do dia, contendo o nome de todos os MC's que participaram. A folhinha é concedida ao campeão da noite) conquistou, frente a frente com quem sempre quis enfrentar. Para ele, era inédito e histórico. Para o rival, poderia ser um tetracampeonato.

Snart conta que imaginou que sentiria receio ao enfrentar Charles, mas lembrou do que pensava quando via ele. “Ele me mostrou que a gente pode ganhar um nacional. É por ele que eu acredito que eu posso alcançar meu sonho”.

Cauã pegou o microfone e, depois de tanto rimar com raiva, decidiu falar o que tinha no coração naquele momento. Não encontrou o ódio que costumava vagar por lá. E construiu uma rima finalizada em “finalmente eu consegui chegar na final do Estado. Demorou, mas chegou, o que é meu está guardado”. Snart já tinha participado da competição em 2019, 2022 e 2024, três dos seus oito anos de batalha.

Aprendeu com vários mestres. Já enfrentou Charles, Tonhão, Davcena — jurado naquela noite — e Mandacaru, tidos como o quarteto de ouro do Ceará. Nunca parou de treinar, e finalizou um dos versos da vitória com: “eu te assisti ganhar o nacional. Eu treinei e aumentei meu nível. E foi vendo você ser um vencedor que eu vi que o meu sonho é possível”.

Ele venceu a final também por 2 a 0. Disse que achava que ia desabar no choro quando acontecesse, mas só conseguiu sorrir e pular. Ficou eufórico e não soltou o microfone. Mesmo depois de ganhar, a batida tocou novamente, e ele fez o “free do campeão”. A caixa de som já parecia bater com o coração.

Martin, foi por você que o Snart honrou. Aí, Sequência (MC), irmão, tu perdeu e chorou. Mas você tá vendo? Eu rimava tanto de ódio e acabei vencendo o Estadual quando rimei sobre amor”, disse no freestyle.

“A plateia tá lotada e minha mãe me assistindo de casa. Você tá vendo, dona Ana? O seu filho ficou forte, ele até fez a própria trança. O bom samurai reconhece a sua catana, e eu venço o Estadual no fim de semana. Eu não li, eu não vi, eu vivi tudo na minha pele, porque o Snart é o Nego Drama”, complementa, lembrando de sua mãe, Ana Célia, que comentou "meu filho", seguido de corações, em todas as postagens de Snart como campeão.

Snart diz que fez o freestyle do campeão com toda a dor que teve durante oito anos rimando na Cidade. Nas vezes que seu nome não foi sorteado, quando não tinha o valor da passagem, quando passou por enquadros indo à Cururu. E, no fim, sua paixão pelo movimento coletivo foi mais forte que a raiva que sentia solitário.

“Liberei toda mágoa, todo ódio que ainda tinha em mim, por isso agora eu me sinto uma pessoa diferente por desabafar e até falar de amor, quem diria”, conta rindo à toa.

Entre um round e outro, o atendente de telemarketing falava do sonho de viver da arte, de não decepcionar os amigos de batalha e nem os colegas de empresa que agora o chamam pelo vulgo e pedem rima nas festas da empresa.

“Eu tinha que ir trabalhar hoje e falei para a minha chefe que tinha a batalha mais importante do ano. Ela me motivou e mandou eu só voltar com o título, me prometeu uma folga na segunda se eu ganhasse. Eles me apoiam e isso faz a diferença”, conta.

Por todos que gritaram por suas rimas e fortaleceram a cena até o Estadual, Snart quer fazer bonito em Belo Horizonte e mostrar que cada urso carrega a premissa de mostrar toda a sua garra.

“Se depender de nós, a gente sempre vai chegar longe. Somos pouco vistos, mas não estar no eixo nos motiva a mostrar para eles que temos endereço no rap. Quando deixam chegar, a gente faz acontecer”, diz.

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