Teatro infantil: em ‘O Poderoso de Marte’, Grupo Teca opta pela força da dramaturgia
Críticos convidados pelo VI Encontro de Realizadores de Teatro Para as Infâncias escrevem para sobre as montagens apresentadas durante o evento. O POVO publica os textos opinativos ao longo do evento
Dib Carneiro Neto/ Crítico convidado do VI Encontro de Realizadores de Teatro Para as Infâncias
Percebo, nestes anos recentes, que nos acostumamos a chamar de pós-pandemia, pelo menos duas vertentes temáticas bem frequentes nas peças de teatro para crianças: a importância de brincar e a valorização do ofício de artista.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Vários espetáculos têm sido montados a partir dessas premissas. Um deles, que nem é tão recente, ‘O Poderoso de Marte’, produzido em Salvador, Bahia, mas que só consegui ver agora, traz em si os dois temas ao mesmo tempo, o que é maravilhoso.
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O texto se encaixa nessa onda atual – e de forma bem contundente. Pude assistir dentro da programação diversificada desta maravilha de iniciativa cearense, o VI Encontro de Realizadores de Teatro para as Infâncias, que se realiza em Fortaleza, Ceará, por obra do premiado grupo local Pavilhão da Magnólia.
Em ‘O Poderoso de Marte’, duas crianças brincam de faz-de-conta no quintal de suas casas, criando alguns personagens, dentre eles a soldada Atenas e o palhaço Piolhinho. Bem na linha da certeira canção "João e Maria", de Chico Buarque: "Agora eu era o herói, o meu cavalo só falava inglês, a noiva do caubói era você etc. etc. etc". Uma brincadeira após a outra.
Com texto do dramaturgo Tom S. Figueiredo e direção de Osvaldo Rosa, que morreu durante os ensaios, o espetáculo infanto-juvenil foi criado especialmente para ser encenado pelo Grupo Teca Teatro – é a décima terceira obra do coletivo baiano, em suas mais de duas décadas de valorosa trajetória, incluindo nisso seus cursos de formação de atores mirins em Salvador.
Muito bem em cena estão Luciana Comin, como a rígida soldada, e Marconi Arap, como o divertido palhaço – uma dupla que, do começo ao fim, demonstra entrosamento cênico admirável. Existe entre eles um jogo evidente de criança brincando no quintal, ainda que o texto, a cenografia enxuta e os figurinos futuristas distópicos nos levem a acreditar que estejam em um devastado planeta Marte, em guerra secular planetária.
É linda e muito bem defendida pela dupla a ideia de buscar a empatia da plateia infantil para temas tão adultos, a partir do resgate de brincadeiras da nossa infância. Isso deveria até ser mais e mais valorizado na encenação, pois a partir de determinado ponto da peça os dois artistas ficam estáticos demais no palco, priorizando o embate verbal, ou seja, a força do texto.
É inegável que o texto – volumoso, palavroso, reiterativo, consistente – tem essa potência rara de levantar camadas diversas. A dupla de intérpretes, quando fala da peça nas entrevistas e nos debates, admite justamente a preferência do grupo pelo texto-centrismo e por realizar espetáculos que invariavelmente nascem devido à força propulsora de uma dramaturgia. É quase uma reverência exagerada aos dramaturgos.
O que me parece, neste "Poderoso de Marte", é que a profusão de entendimentos possíveis – ligação com conflitos reais entre potências mundiais, como a guerra entre Ucrânia e Rússia, ou a intolerância ao discurso divergente, os conflitos ideológicos, a polarização, o autoritarismo, a falta de empatia – deixa a encenação com peso demais, com ranço de ser excessiva, demorada e longa. A meu ver, a força maior deveria permanecer na escolha entre ser guerreira e ser palhaço. Um palhaço mostrando para um ser pragmático e calculista o quanto a arte também pode ser arma de guerra, instrumento de luta – o quanto, na vida, brincar é tão ou mais proveitoso do que lutar. Se ficasse só nisso, já seria uma grande peça. Um tema frutífero para crianças levarem para sempre. Um tema com potencial para despertar vocações artísticas nas crianças que porventura possam estar intimidadas e reprimidas por motivos vários.
Os diálogos entre as duas crianças-personagens sobre essa questão, uma tentando convencer a outra de que seu ofício é melhor, são bem construídos e se configuram em excelente e necessário ponto de partida, mas que ficam mais fortes em determinado tempo da peça, e depois só enfraquecem, pois se repetem, sem se aprofundar, sem que se criem mais e mais situações dramáticas a partir dessa polarização, dessa gangorra entre trincheira e picadeiro. A simbologia riquíssima do mundo do circo permite incontáveis brincadeiras cênicas, que poderiam encantar a plateia mais do que mil palavras, por exemplo.
O autor, talvez para tentar dinamizar sua proposta dramatúrgica, enxertou na peça mais alguns personagens, que, a meu ver, não funcionam muito bem. Quando entra um bibliotecário, logo imaginei que se falaria dos livros sendo destruídos na guerra e que se mencionaria ali a importância da leitura e o crime que é destruir uma biblioteca. Mas não. Isso não está na peça. Por que, então, um bibliotecário? Quando surge um menino, ele mais se parece com uma pessoa com nanismo, pois a atriz se arrasta ajoelhada no chão. A personagem já é criança, a convenção já está posta, portanto, não há a necessidade de diminuir a altura da atriz. O fato é que "O Poderoso de Marte" peca pela falta de foco, pelo ímpeto perfeitamente compreensível de querer ser abrangente e multitemático, quando ficaria mais marcante e eficiente caso se concentrasse na incrível ideia de fazer o palhaço convencer a soldada do valor da arte – e tudo pela ótica de duas crianças de personalidades diferentes brincando de serem adultas.
O VI Encontro de Realizadores de Teatro Para as Infâncias é um projeto que conta com o apoio da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, via Lei Paulo Gustavo (LC nº 195/2022) através do Edital de Apoio a Festivais Culturais do Ceará – 2023 e pelo Programa Funarte de Apoio a Ações Continuadas nos Espaços Artísticos.
O VI Encontro de Realizadores de Teatro Para as Infância foi realizado entre os dias 6 e 10 de maio em vários locais de Fortaleza.
*Dib Carneiro Neto é jornalista, dramaturgo e crítico, responsável pelo site "Pecinha É a Vovozinha".