Cannes 2024: Richard Gere e Jia Zhangke mergulham na ficção da memória

No segundo dia da cobertura exclusiva do O POVO, filmes do americano Paul Schrader e do chinês Jia Zhangke hipnotizam a plateia na busca pela Palma de Ouro
Autor Arthur Gadelha
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“É errado filmar isso”, contesta Alicia (Uma Thurman) para a equipe de filmagem que está instalada na casa de Leonard Fife (Richard Gere) para gravar um documentário sobre sua vida.

Definhando por conta do câncer, Fife é um famoso documentarista e ex-professor universitário que, dentre tantos movimentos políticos, foi para o Canadá fugindo do alistamento para a Guerra do Vietnã.

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Sendo um filme de Paul Schrader, geralmente referenciado como roteirista de “Taxi Driver” e diretor de filmes enigmáticos mais recentes como “Fé Corrompida” e “O Contador de Cartas”, esperava algo menos simpático. Na prática, a leveza desse retorno do protagonista ao passado é o seu maior trunfo, construindo um filme honesto e comedido.

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Afetado pelos remédios e tendo uma vida pregressa pouco revelada, será que ele não está inventando sua própria memória? Nesse ponto, Schrader se contenta apenas com a sugestão, o que é ótimo para nos manter envolvidos até o fim.

No presente, Fife é interpretado por um Richard Gere muito dedicado à fragilidade que o personagem exige. Ao ser enquadrado quase sempre muito perto da câmera, Schrader parece não esconder que já está com a cabeça lá no Oscar, campanha que pode acabar se estendendo também para Uma Thurman e Jacob Elordi que conquistam seus destaques mesmo que de forma efêmera.

“Oh, Canadá”, porém, é inofensivo demais para causar alguma emoção ou empatia de forma segura com a plateia. Ao fim da sessão encontrei tanto pessoas emocionadas quanto indiferentes. É um filme realmente bom de assistir, e o ritmo da montagem entre os dois atores do passado e presente ajuda muito, mas não me causa qualquer chacoalho.

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Em Cannes, Jia Zhangke participa da sessão no cinema

Não posso dizer o mesmo de “Caught by the Tides”, do Jia Zhangke, diretor chinês que inclusive estava presente na sessão do Grand Theatre Lumiére.

“Apanhado pelas Marés”, em tradução livre, é um título belíssimo que resume a jornada experimental que cria uma rima com sua própria filmografia ao intercalar real e ficção no trajeto de um século que anda na velocidade da luz.

Viajando de 2001 até 2022 na observação não só da China, mas também do mundo, Qiaoqiao (Tao Zhao) peregrina atrás de um amor perdido enquanto nós vamos entendendo o peso das coisas que mudam.

O filme começa com um lindo momento de descontração entre amigas sorridentes que ficam desafiando umas às outras a cantar. Ao longo de suas quase duas horas, a música e a dança são quase que personagens com vida própria – em dado momento, a câmera conversa com o dono de um antigo salão que narra sua experiência com a origem festiva daquele lugar.

Nas intervenções da realidade caminhante, filmando pessoas e lugares, sou levado à abordagem estética do cearense “Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo” (2009).

Enquanto na linguagem que costura essas imagens de diferentes origens de captação, mídias e janelas de exibição, minha memória vai parar nos últimos filmes alucinados de Jean-Luc Godard.

Mas Jia o faz do seu jeito, balançando realidade, sonho e ficção de forma que elas nunca pareçam competir entre si apesar das distâncias e da montagem às vezes bruscas.

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Apesar da melancolia que é ver o mundo deste século mudar do coletivo para o individual, este também consegue ser um filme alegre de nostalgia imediata como se aquelas memórias também nos pertencessem.

Seu desfecho, porém, é menos otimista quando olha para esse futuro de hoje e vemos as inteligências artificiais avançando para sintetizar o que nós pensamos ao invés de nos fazer ir adiante, de fato. Será que não estamos então ficando apenas tolos e cada vez mais sozinhos? Jia Zhangke me fisgou aqui.

Para além desses dois filmes, finalmente chegou a minha vez de assistir “Megalopolis”, de Francis Ford Coppola, o mais comentado da edição até o momento. O filme é mais perturbado do que esperto, mas deixo isso para falar em artigo com mais detalhes no O POVO+ que será divulgado em breve.

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