Coluna Vanessa Passos: Roubar de si mesmo: a carta na manga do ficcionista

O ficcionista pode recorrer a um acontecimento vivido e experimentado para resgatar cheiros, sensações e ficcionalizá-los numa história

Tudo pode ser roubado. Será mesmo? Tomo emprestado o título brilhante do romance de Giovana Madalosso, escritora e roteirista, que recomento fortemente. Em "Tudo pode ser roubado", temos uma garçonete na grande São Paulo que também é ladra. Tem um olho clínico e rouba tudo o que vê para vender a um brechó e realizar o desejo de comprar o seu apê. Mas o roubo a que me refiro aqui neste texto é o roubar como artista, fazendo jus à expressão de Austin Kleon. O autor acredita que artistas estão livres para roubar livremente. Sim ou não?

Por um lado, roubar levanta uma questão importante sobre a originalidade dos textos dos escritores. Quem não deseja escrever algo novo, que foge aos clichês? Escrever uma história única, construir uma personagem cativante? Porém, se formos refletir mais um pouco: o que ainda não foi dito na literatura? Eu me recordo da epígrafe do livro de Jorge Luis Borges que diz, em inglês, mais ou menos o seguinte: não se engane, o novo é o esquecimento. Há quantos séculos estamos lendo histórias sobre amor, sobre vingança, sobre morte?

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Talvez este roubo, esta influência seja mesmo inevitável, porque, se um escritor é antes de tudo um leitor, foi o ato de ler primeiro que despertou o desejo de criar e contar suas próprias histórias.
Por outro lado, o que podemos falar sobre roubar de si, das suas próprias referências, das suas próprias memórias?

Foi com Stephen Koch, em Oficina de escritores: manual de criação literária, que eu aprendi sobre a técnica da memória. O ficcionista pode recorrer a um acontecimento vivido e experimentado para resgatar cheiros, sensações e ficcionalizá-los numa história. Não consiste numa transposição pura e simples.

A memória é o grande trunfo do ficcionista. Roubar de si próprio dá acesso a um repertório de infinitas possibilidades que muitas vezes negligenciamos.

Depois de ter escrito "A filha primitiva", meu romance que foi vencedor da 6º edição do Prêmio Kindle de Literatura, eu sabia que faltava ainda alguma coisa que amarrasse o romance. Foi então que em uma das cenas, decidi escrever sobre o parto normal que a personagem central vivenciou, já que um dos temas centrais do livro é a maternidade.

Eu havia vivido o parto muitos anos atrás. Fiz o exercício de recuperar algumas memórias e entrar mentalmente de novo na Maternidade Escola. Quando terminei de escrever este capítulo, um dos mais fortes do livro, tive a certeza de que tinha encontrado o que eu estava procurando no romance. Encontrei o tom do livro, era a raiva que costurava aquela história, e reescrevi todo o livro carregado desse sentimento que se impregnou na linguagem.

Desde então, quando escrevo, sempre que posso, sempre que me faltam ideias ou estou com bloqueio criativo – algo comum de quem escreve - recorro às minhas memórias, não para copiá-las, mas para capturar algo de único que existe em rememorar. Porque a memória nunca pode ser capturada tal como é, ela também por si só já é uma ficção.

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Vanessa Passos é escritora, professora de escrita criativa e vencedora do Prêmio Kindle com o livro "A filha primitiva"

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