45ª Mostra: as zonas áridas dos filmes "Pegando a Estrada" e "Ahed’s Knee"

Crítico e curador do Cinema do Dragão, Pedro Azevedo indica dois filmes disponíveis na programação virtual da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Disponíveis na plataforma Mostra Play como parte da programação on-line da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, “Pegando a Estrada” é o primeiro filme de longa-metragem de Panah Panahi e “Ahed’s Knee” é o mais recente trabalho do cineasta israelense Nadav Lapid (de “Synonyms”). Apesar de serem estética e narrativamente bastante diferentes entre si, resolvi reuni-los num único texto que pudesse dar conta de uma espécie de aridez que escorre dos cantos da tela enquanto nós, espectadores, somos convidados a percorrer paisagens desérticas no Irã e em Israel que são, num só tempo, determinantes para mapear a geografia dos locais filmados (numa secura areal que pigmenta a tela de cores terracota), localizando os corpos dos personagens como meios em trânsito constante, e também acabam por mediar as relações afetivas entre os protagonistas de ambos os filmes.

“Pegando a Estrada” é um belíssimo longa de estreia, como poucos que vi no passado recente, o que é compreensível dada a relação entre o realizador iraniano Panah Panahi e o seu pai Jafar Panahi, além da tutoria que o jovem cineasta teve, durante os seus anos de formação, com Abbas Kiarostami.

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No filme, uma família parte num carro alugado de Teerã para o noroeste do Irã, numa viagem cujo objetivo nunca é diretamente explicitado, afora os pequenos detalhes que captamos pouco a pouco a partir de diálogos pontuais entre os personagens. A família é composta por um pai, uma mãe e dois irmãos, sendo um mais novo e outro adulto. Nos meandros da paisagem desértica iraniana, os pais se apressam para deixar o filho mais velho na fronteira da Turquia, onde deve começar uma nova vida.

Confira o trailer de "Pegando a Estrada" (em inglês):

Chama atenção não apenas a excelente direção de atores, com destaque para o ator que interpreta a criança – cuja presença magnética rende ao filme vários momentos que alcançam verdadeiros estados de graça –, como também a forma como Panahi constrói uma imbricada relação de dualidade entre o interior do carro – onde boa parte da ação dramática se desenrola – e o exterior da paisagem desértica do Irã, conseguindo ser ao mesmo tempo brutalmente frontal e afetuoso com os seus protagonistas, dando espaço para que os personagens brilhem em suas interpretações, como também (e paradoxalmente) virtualmente distante em alguns dos momentos que apresentam as maiores cargas dramáticas.

Seguindo uma estrutura clássica de road movie, “Pegando a Estrada” progride ao passo que a viagem avança e novos personagens são incorporados à narrativa, como um ciclista que é acidentalmente atropelado pelo pai enquanto realizava uma prova de resistência junto a outros atletas.

O misterioso porvir da viagem, contudo, parece ocultar tacitamente os verdadeiros motivos que levaram a família a sair de Teerã, apesar do objetivo final, pelo que se desenha no fiapo de história apresentada pelo roteiro, ser facilitar a fuga do filho mais velho do país.

Panahi é especialmente feliz na utilização de grandes planos gerais que imprimem a grandiosidade aos terrenos áridos do deserto iraniano, mediando também a relação dos corpos que correm desesperadamente de uma ponta a outra da tela em momentos de alta voltagem dramática. Os diálogos do filme são, muitas vezes, pouco reveladores dos mistérios intrínsecos à narrativa, mas trazem consigo algumas respostas que ajudam a desvendar os motivos por trás da jornada na qual os protagonistas se submetem.

A relação íntima com a música (que mobiliza os ouvidos e os membros), além de um traço abertamente fabulativo na relação com a imagem, também conduzem o filme a alguns momentos de singeleza absolutamente particulares, como quando o filho e o pai, abraçados, vão sumindo da tela em direção a uma vastidão cósmica que revela a pequeneza das nossas micro histórias em meio à imensidão do cosmos.

Confira o trailer de "Ahed's Knee" (em inglês):

Já em “Ahed’s Knee”, somos apresentados a uma narrativa mais abertamente verborrágica na qual se desenha, além da relação forte com a palavra, uma liberdade de experimentação formal do diretor Nadav Lapid, servindo também como denúncia de um estado israelense que tutela de forma tirânica as artes e os artistas.

No filme, um cineasta viaja ao interior de Israel para lançar e debater o seu mais recente longa-metragem. A viagem logo se converte numa espiral de pesadelo quando constatamos que ele não tem liberdade para debater os assuntos sensíveis que atravessam a sua obra e que denunciam a situação geopolítica complexa que marca a experiência política do estado israelense tanto no passado quanto no presente.

Longa israelense 'Ahed's Knee', de Nadav Lapid, denuncia a 'tutela tirânica' das artes e artistas no estado de Israel
Longa israelense 'Ahed's Knee', de Nadav Lapid, denuncia a 'tutela tirânica' das artes e artistas no estado de Israel (Foto: divulgação)

O filme se detém principalmente na relação entre o personagem do cineasta e a funcionária pública ligada ao ministério da cultura de Israel, que o recebe numa pequena cidade desértica onde o seu filme será exibido e debatido com a plateia local. As tensões e contradições que atravessam essa relação vão avançando ao passo que o tom do filme escala em gravidade. “Ahed’s Knee” é um filme raivoso, com monólogos explosivos e personagens levados a situações limites nas quais são testados como num laboratório de crueldades.

Aqui, como em “Pegando a Estrada”, a paisagem árida também parece ser um elemento determinante para tensionar as relações humanas que se estabelecem a partir da deambulação dos personagens nos cenários desérticos. Nesse terreno seco e sem vida nada parece prosperar, assim como a arte e o livre manifesto de expressão dos artistas sob a tutela tirânica do governo israelense.

“Pegando a Estrada” é o registro afetivo de uma família em estado de trânsito, enquanto “Ahed’s Knee” é uma denúncia explosiva sobre o estado das coisas em Israel. A aridez que se desenha na tela poderia servir muito bem para avizinhar estas duas experiências tão singulares.

45ª Mostra de Cinema de São Paulo

Quando: até 3 de novembro
Onde: www.mostraplay.mostra.org, para todo o País
Mais info: 45.mostra.org ou @mostrasp

Pedro Azevedo é crítico e curador do Cinema do Dragão

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