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Pacarrete re-existir

12:15 | Ago. 28, 2019
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"Pacarrete" é uma dessas histórias particulares-universais que têm a potência de causar estranhamento no outro e em mim não foi diferente. Não vou escrever apenas do ponto de vista do espectador de uma película, mas de outro lugar, afinal, tive o privilégio de conhecer/conviver com três sujeitos que levaram seu desejo a lugares que poucos alcançaram. A própria Pacarrete que conheci em vida na pequena Russas da década de 80 e foi meu primeiro encontro com o diferente que encanta e assusta. Marcélia que a encarna magistralmente e é a invenção da delicadeza e o próprio Allan, inquieto e irreverente. De uma forma ou outra, tive a oportunidade de acessar fragmentos de vida dos três e posso afirmar que resistência é o ponto que os enlaça e os torna, como bons sertanejos, antes de tudo, fortes. 

Conheci Marcélia durante um jantar e conversamos por algumas boas horas sobre a vida, a arte e a Psicanálise e escutei um depoimento fabuloso do período que ganhou seu primeiro urso. Relatou sua entrada no teatro amador lá no interior da Paraíba, também nos idos de 80, sua viagem para São Paulo, como conheceu Susana Amaral e foi escolhida para participar de "A hora da Estrela".

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Meses depois estava em plena Berlim sendo ovacionada por uma plateia calorosa e atônita com aquela talentosa jovem que surpreendentemente desbancara atrizes de maior prestígio e carreira. Daí me contou uma das histórias mais pungentes escutadas ultimamente. Saíra diretamente da premiação para ligar pra sua mãe, mulher simples e forte, que também morava no interior da Paraíba. Na ligação ela comemorava emocionada e dizia: "- Mãaaaae, ganhei o urso, ganhei o urso!!". A mãe, sem ter dimensão do que se tratava, respondeu em um desses fabulosos equívocos que só a linguagem promove: "não traga esse bicho pra cá não!! Porque não vamos ter dinheiro pra dar de comer a esse bicho grande não". Marcélia contou essa história entre gargalhadas e uma pungente lembrança do que passou na vida. Resistência.

Allan era aquele garoto gordinho, meio tímido e inquieto que se sentia diferente da grande maioria. Frequentou uma escola católica conservadora, assistia a missa das crianças nas manhãs de domingo na Igreja de São Sebastião, acompanhou a decadência do Cine 5 de Julho (ou Junho?), que de filmes d'Os Trapalhões passou a exibir atrações proibidas para menores de 18 anos. Certamente frequentou, quando se tornou adolescente, as festas no Lua Cheia "Club" e rodou a calçada da Matriz na busca de suas primeiras aventuras e frustrações. Anos depois, filho de família humilde, com bastante dificuldade, foi cursar cinema no Rio de janeiro e sim, antes que eu esqueça, como todo garoto de sua época, também não podia passear de bicicleta ou andar pela calçada de Pacarrete, quase sua vizinha. Essa era uma das estranhezas de Pacarrete e aquilo que para muitos se trata hoje de uma vaga e engraçada recordação se transformou em arte nas mãos de Allan. Resistência.

Pacarrete, finalmente, foi uma mulher que jamais passaria despercebida. Não porque não quisesse, mas porque não podia. Suas roupas muito arrumadas e chamativas, seu tom de voz alto, um olhar perscrutador e desafiador marcavam quem passasse por perto, em especial, as crianças. A calçada de sua casa era litoral nítido e, paradoxalmente, fugidio. Em alguns dias a fronteira estava aberta em outras uma guerra era deflagrada contra quem ousasse transpor seu perímetro. Palavras sem sentido, novas palavras e mesmo palavras em francês apareciam e tentavam descrever um intenso mundo interior que, aparentemente, não se ajustava ao que estava ao redor... nem imagino a solitária devastação. Resistência.

Apesar disso e, de repente, por causa disso Pacarrete dançava, fazia ginástica em público, cuidava de seu cachorro, criava e... denunciava. Se na metáfora da Grécia Antiga era papel dos cegos enxergar as iniquidades da sociedade e denunciá-las, de uns tempos pra cá coube a desrazão esse papel e Pacarrete era assim quando criticava a falta de educação e respeito de seus pares e, principalmente, da importância da cultura.

Em torno desses três sujeitos, afastados temporal e espacialmente se formou um nó, uma amarração e a palavra resistência a representa. Representa a humanidade.

Marcus Eugênio Lima, Psicanalista.

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