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Gabriel Aragão, da banda Selvagens à Procura de Lei, escreve sobre paternidade

19:14 | Ago. 09, 2019
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Tipo Notícia

Não tenho orgulho da minha última noite de sono. No chacoalhar de doze horas entre Fortaleza e Campina Grande é possível apagar, mas nunca dormir com a plenitude de um vagabundo profissional. 'Morning Phase", do Beck, rolava no modo repeat enquanto a escuridão desfilava na janela da poltrona número 3. Não dou muito crédito aos sinais, só um pouquinho. Ainda gosto de tirar onda de cético ao bater de frente com o esoterismo. Quando estou sozinho no entanto, me pego falando com o Onipresente e, às vezes, até derrubo uma gota salgada.

É de lei: check-in no hotel, café (se der tempo) e cochilo antes da passagem de som. Restavam apenas dois shows na Paraíba antes da pausa na agenda da banda e, finalmente, estaria voando pra casa, tempo suficiente para a chegada do Nuno. A previsão do parto era para dali a 15 dias. Depois do almoço, uma mensagem da Claudia, minha esposa, no grupo com a doula e a obstetra: pela primeira vez, havia saído uma secreção consistente e amarronzada. Seria o tal do tampão? Eram dez para as duas da tarde. Um calafrio fez zigue-zague nas costas, mas o “apenas continuem observando” das profissionais teve poder tranquilizador e - não sei como - consegui dormir por uma hora e meia.

Nas turnês, meus ataques de sonâmbulo têm fama própria e já provocaram sustos icônicos em quem divide o quarto comigo. Geralmente dou um salto da cama com vigor de felino e falo mais alto do que devia: “Que é isso!? Cara, o que é isso!?”, bem no meio da madrugada. Estou inconsciente. Deve durar uns dez segundos e, depois que passa, dá vontade de rir. Mas, naquela tarde, eu pulei da cama consciente de tudo. Sabia onde estava e não precisei perguntar “o que é isso!?” pra ninguém. Deslizei o dedão no celular e li uma “Colicazinha muito de leve na barriga” aqui, uma provável “Ruptura alta de bolsa” acolá, um “Fiquem ligados em sinais de trabalho de parto”, porém o derradeiro “Cho-ca-da! Fiquei internada e tô com 3 de dilatação” da Claudia me fez arrumar com voracidade a mala que havia sido desfeita poucas horas antes.

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Teríamos que cancelar um show, mas aquilo não importava agora. Todo mundo virou um pouco produtor e pipocaram sugestões como ir até João Pessoa pegar o primeiro vôo para São Paulo. Lotado. Recife? Quatro horas só para chegar de carro ou ônibus… Campina Grande tinha uma única opção: às 3 da madrugada e com 2 vagas dando bobeira. Os caras disseram que eu parecia muito calmo. Deve ser assim que eu pareço quando estou nervoso, porque podia sentir minha alma tremer. Como quando se está tão chapado que é possível se passar de pessoa zen mas a mente viaja à quilômetros de distância ou em mundos paralelos.

O show daquela noite não precisaria ser adiado. Já passei alguns aniversários no palco. Me apresentei no dia do nosso casamento civil, caramba. Mas esses momentos em Campina Grande não vou esquecer jamais. Com votos de “tudo de bom” e “vai dar tudo certo” me despedi com um abraço apertado e me mandei. Uma névoa absurda permeava a estrada para o aeroporto e era realmente difícil de enxergá-la. O taxista me contou então que em noites assim costumam atrasar ou até cancelar as decolagens. “Hoje não”, pensei, e voltei a ouvir Beck nos fones. Com sorte eu chegaria minutos antes da médica segurar o bebê, era tudo o que eu pensava.

 

Uma amiga me deu carona até o hospital. Eufórico, o segurança me estranhou. Não percebi na hora, mas parecia que eu estava atrasado para fazer um show dos Selvagens ali mesmo e não para receber meu filho. Contei uma história que não podia ter sido inventada e driblei a burocracia do cadastro. Vá até o segundo andar e vire à direita! “Olá, sou o pai do Nuno”, as palavras saíram como se fosse eu quem carregasse ele na barriga. Me troquei e vi de relance no espelho uma figura paterna vestindo laranja e de toca na cabeça. Passei a catraca, cruzei a ala masculina da enfermagem e segui a faixa amarela no chão até os quartos. “Onde fica 206!? Minha mulher está dando à luz!” Dar à luz, pensei… Dar o filho ao mundo, à vida. Abri a porta. A doula havia preparado um aconchego gostoso com aromas, meias-luzes e uma playlist que preparamos meses antes causando belos déjà vus entre uma faixa e outra.

Nos abraçamos. Ela me disse depois que estava me esperando para dar início. Quem sabe de fato do que a psique humana é capaz? Poderia narrar o que se seguiu de trás pra frente ou de cabeça pra baixo, mas agora isso me parece de uma frieza como explicar a técnica por trás de uma composição. Sou fã das palavras, mas existem situações mágicas - como o parto - que elas apenas diminuem o que aconteceu. Talvez aí entre a fantasia, os contos coloridos e as lendas, para suprir essa necessidade jornalística de transcrição. O que posso contar é que foi como tomar banho em um lindo rio e voltar transformado ou como se o sentimento de amor se materializasse milagrosamente e falasse como Jesus à Tomé: “Coloca o teu dedo aqui, vê as minhas mãos. Estende tua mão e coloca-a no meu lado. Agora não sejas um incrédulo, mas crente.”

Quando o Nuno já estava do lado de fora, deitado sobre a sua mãe, eu não chorei. Quando a emoção é das grandes eu não choro, apenas contemplo. Talvez chore por dentro, não sei. Não tive tempo de pensar nisso, em como eu deveria me sentir. Por isso, apenas contemplei. Coloquei o meu indicador em sua mão pequenina e ele o apertou com toda força do mundo. Naquele instante algum pacto foi selado, algum anjo disse amém, alguns corações bateram mais forte. Virei pai antes do meu filho sair da barriga e continuarei virando pai a cada troca de fralda e, mais à frente, a cada joelho ralado e, depois, a cada vitória, dúvida, fracasso, em cada escolha, enfim: estarei lá sendo e aprendendo a ser pai. Pode contar comigo

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