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SUS completa 30 anos de criação em contexto de subfinanciamento, teto de gastos e pandemia

A lei que regulamenta o Sus foi sancionada em 19 de setembro de 1990, mas o sistema nasce ainda em 1988, com a Constituição Federal. Veja a história, trajetória, importância e impasses políticos do SUS
10:58 | Set. 18, 2020
Autor Gabriela Feitosa
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Gabriela Feitosa Estagiária do O POVO Online
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Tipo Notícia

Em dezembro de 2019, Samuel Alves Gadelha deu entrada no Hospital Geral de Fortaleza (HGF) após ser diagnosticado com síndrome de Guillain Barré, um distúrbio autoimune em que o sistema imunológico do próprio corpo ataca parte do sistema nervoso. A mãe de Samuel, Sandra Alves, conta a história ao O POVO emocionada, destacando o serviço do Sistema Único de Saúde (SUS) no tratamento do filho. “Atendimento de primeira, com neurologista, fisioterapeuta, fonoaudióloga, terapeuta. Vi a vida e o olhar do meu filho se reacender ali”, comenta.

Coincidentemente, os dois (Samuel e o SUS) fazem aniversário no mesmo dia: 19 de setembro. Recuperado mas ainda em tratamento, Samuel celebra os 22 anos com uma história forte para contar: por causa da síndrome, o jovem estava perdendo o movimento dos braços e pernas. “Você sabe o que é você olhar para seu filho e ver ele deprimido, sem esperança, se entregando?”, indaga Sandra. “Eu vi isso em cada movimento de seu corpo, em cada olhar tristonho, mas o SUS e Deus fizeram esse milagre”, conta a mãe de Samuel, que ainda é acompanhado pelo HGF a cada dois meses. O jovem cursa engenharia e já está estagiando.

À essa introdução, junta-se também o relato de Luciana Ribeiro, outra mãe com uma história especial para contar sobre o SUS. Grávida aos 21 anos, cheia de dúvidas e incertezas, foi em uma unidade de saúde próxima à sua casa, no bairro Montese, que a jovem teve sua gravidez acompanhada. “Desde o começo, minhas consultas pré-natal foram no SUS. Sempre fui muito bem atendida. Sei que tem mulheres com reclamações. Mas, desde a primeira vez que fui no posto, com muitas dúvidas, fui bem atendida”, conta.

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Perto de completar as 40 semanas, Luciana teve complicações na gravidez. Em uma noite, após sentir dores fortes na barriga, decidiu ir a um hospital da rede privada que pagava com um plano. O médico a mandou de volta para casa, mas uma enfermeira, vendo o sofrimento da jovem, recomendou que ela fosse para a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac).

“Quando cheguei lá, me internaram logo. Era um quadro de eclâmpsia. Após 24 horas, eu estava bem, podia ir pra casa”, acrescenta Luciana. Como já estava perto de completar as 40 semanas, o médico da Meac resolveu fazer uma indução de parto. Sozinha e com medo, ela teve o apoio do anestesista da operação, que ficou o parto inteiro próximo a ela. Hoje, a criança já está com seis anos, mas a mãe não esquece o apoio que teve na maternidade.

O fio condutor que une essas e outras histórias é o Sistema Único de Saúde (SUS), que neste sábado completa 30 anos desde que sua lei de criação foi regulamentada, em 1990. Entretanto, o seu “nascimento” acontece dois anos antes disso, em 1988. Foi sob forte pressão de movimentos civis e sociais que a Constituição Federal daquele ano dedicou um capítulo à saúde, prevendo que ela deveria ser universal e de acesso igualitário.

 Sandra e os dois filhos gêmeos, Samuel e Ismael
Sandra e os dois filhos gêmeos, Samuel e Ismael (Foto: Arquivo Pessoal)


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Fruto do direito à saúde

Fruto da Constituição de 88, o SUS nasce como uma grande mobilizador do acesso à saúde pública e de qualidade. Nasce também quando o Brasil ainda se recuperava da Ditadura Militar (1964-1985). O País passava pelo processo de redemocratização e na construção de uma constituinte, os movimentos sociais da época engataram a criação do sistema.

É lógico que o sistema traria consigo muitas características da década. É o que conta o diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Ricardo Heinzelmann. “Por exemplo a descentralização com municipalização, em que cada município tem o seu poder de execução e planejamento local. Isso complexifica muito o sistema”, aponta o médico. É isso que faz com que aqui em Fortaleza o sistema opere de uma forma diferente de outras cidades.

“A gente olha para a década de 1980 e as pessoas estavam revoltadas com a ideia de centralização. Eles queriam que o poder tivesse descentralizado. Hoje, tem autores que questionam isso, afirmando que deveria regionalizar mais”, conta Heinzelmann, que além de médico foi também gestor do SUS.

No entanto, foi essa municipalização que, segundo Ricardo, garantiu com o que o SUS seguisse. Ao mesmo tempo, ela impede uma uniformização dos processos, o que torna o sistema mais lento pois “qualquer medida tem que ser compactuada com estados e municípios”. “Eu hoje penso que tem que se pensar em mecanismos. Há benefícios porque dá mais estabilidade enquanto política pública, mas perda em força”, afirma Heinzelmann.

Defensor do SUS, o médico considera o sistema o maior patrimônio da população brasileira e ainda mais importante nesse momento de pandemia. “Só olhar outros países. Pegar os Estados Unidos, que se coloca como exemplo. Lá, as pessoas estão vendendo carro e casa para pagar as contas de hospitais. Vivenciar a pandemia sem o SUS seria um caos muito maior”, afirma. O número de mortes seria maior, principalmente em periferias e das populações rurais.

Para se ter ideia, a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 revelou que a maioria da população (80%) era dependente do SUS. E é possível dizer que 100% dos brasileiros utiliza os serviços do sistema, seja na atenção primária ou em vacinas. Nesse contexto de pandemia, por exemplo, é a FioCruz que tem produzido kits para testagens do novo coronavírus.

“O SUS é uma medida que tem conseguido proteger vidas e a gente tem tudo isso com financiamento mínimo”, comenta Heinzelmann sobre os desafios do sistema. Para ele, o tema dos recursos financeiros é o maior obstáculo. “Desde o seu início ele foi subfinanciado. O SUS foi regulamentado do governo Collor de Melo. Ele vetou a parte do financiamento, a parte da participação popular”, explica o diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

Após o veto, movimentos se organizaram novamente para garantir que medidas básicas de financiamento fossem cumpridas. Assim, uma segunda lei que regulamenta a criação do SUS (8.142/90) foi sancionada. Para ele, desde o início houve tentativa de não garantir financiamento adequado.

Concorda com Heinzelmann a enfermeira Lúcia Arruda, que também é membro do Sindicato dos Enfermeiros do Ceará (Senece). Há mais de 30 anos na profissão, ela viu o SUS ser desenhado na 8° Conferência Nacional de Saúde (realizada entre 17 e 21 de março de 1986).

Para Lúcia, o SUS ainda é uma política em construção, mas que hoje não consegue respirar plenamente. “Se o SUS não existisse, mesmo com precarização, subfinanciamento, estaríamos numa situação muito mais complexa. Ele precisa de democracia para respirar e nós não vivemos uma democracia plena”, afirma a enfermeira.

Os profissionais da enfermagem, assim como outras áreas da saúde, estão à frente do combate à pandemia. Lúcia, que trabalha no Centro de Dermatologia Dona Libânia, dedicou toda sua vida ao serviço público - do qual não se arrepende.

Para ela, o contexto brasileiro consegue estar ainda mais prejudicado com o coronavírus devido às iniciativas do governo Bolsonaro. “A cada dia ele assusta nosso amanhecer com notícias de mais desmontes, queimadas, mais mortes na pandemia e desmontes na pesquisa”, comenta emocionada.

Uma política ainda em construção: SUS e seus desafios

As fontes consultadas nessa matéria apontam o financiamento do SUS como o grande desafio a ser enfrentado nos próximos anos. Isso porque, além do que já foi citado, outro fator importante para entender o desmonte do sistema é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, de 2016. Ela congela as despesas do Governo Federal por até 20 anos, com cifras corrigidas pela inflação.

À época, o ex-presidente Michel Temer viu na medida uma forma de equilibrar as contas públicas. Entretanto, ninguém previa que uma pandemia assolasse o mundo, aprofundando ainda mais as desigualdades.

Para Ricardo Heinzelmann, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), os 20 anos sem aumento do orçamento de políticas sociais, a “PEC da Morte”, produziu ainda mais mortes na pandemia , que poderiam ser evitadas, na opinião do médico. “A gente está falando de uma população que está envelhecendo, crescendo, e se mantém o mesmo financiamento durante 20 anos. Isso representa desassistência”, considera Heinzelmann.

O não financiamento representa também outros atrasos para o SUS, como não incorporação de inovações tecnológicas, o que prejudica ainda mais pessoas vulneráveis. O quadro piora: em 2021 está prevista a redução de 35 bilhões de recursos, conforme dados do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Ainda de acordo com órgão, a perda deve interferir de forma drástica em inúmeras ações do SUS, visto que haverá demanda reprimida diante da pandemia, além da ausência de recurso para manutenção do legado adquirido, que pode resultar em milhares de respiradores e leitos de UTI inutilizados em depósitos.

Outros desafios

A revista científica The Lancet publicou um artigo sobre o processo de implementação e expansão do Sistema Único de Saúde (SUS). O documento teve participação da pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Ligia Giovanella, que contribuiu na análise sobre a caracterização do SUS e a organização da Atenção Primária em Saúde ao longo desses anos.

O artigo traz recomendações para garantir a continuidade do SUS:

- manter os princípios do SUS;
- assegurar o financiamento público suficiente e a alocação eficiente de recursos no SUS;
- fornecer os serviços através de uma rede integrada;
- desenvolver um novo modelo de governança interfederativa;
- expandir os investimentos no setor saúde;
- fortalecer as políticas econômicas, tecnológicas, industriais e sociais e marcos regulatórios para a produção e a avaliação de tecnologias e serviços de saúde;
- promover o diálogo social com os diferentes atores do governo, os trabalhadores do SUS, a academia e a sociedade civil” são os caminhos apontados.

Ainda conforme publicação, a trajetória de desenvolvimento e expansão do SUS oferece lições valiosas sobre como dimensionar a cobertura universal de saúde em um país altamente desigual, com recursos relativamente baixos alocados para serviços de saúde pelo governo em comparação com os de países de renda média e alta.

> Você pode ler artigo completo aqui

A crise dos 30 anos

O Superintendente da Escola de Saúde Pública (ESP) do Ceará, Marcelo Alcântara, definiu o novo momento do SUS como “a crise dos 30 anos”. De um lado, ele tem sua identidade definida, os valores solidificados, mas de outro precisa ficar ainda mais forte e maduro. “Para mim, a grande ameaça (desse momento) é a diminuição do SUS. Acho que a gente precisa debater teto de gastos. Responsabilidade fiscal é importante, mas precisamos debater como distribuir os recursos”, afirma Alcântara.

O serviço é também parte importante da vida dos cearenses. Segundo Marcelo, mais de 80% da população do Estado utiliza o SUS como “único amparo”. As histórias contadas no início da reportagem refletem isso, mas outros dados também: o Ceará está no ranking brasileiro de cirurgias de transplante de fígado, alcançando o segundo melhor lugar em 2018, com 1.536 transplantes.

Marcelo conta orgulhoso sobre a informação, reforçando a importância do sistema no Ceará: “É um sistema que cuida desde quando uma pessoa nasce até a morte. Por isso mesmo ele tem outra importância que é diminuir desigualdade, injustiça social. Quando cuidamos do SUS, cuidamos de nós mesmos”, encerra o superintendente.

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