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Falciforme: doença hereditária de maior prevalência no Brasil incide ainda mais na população negra

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que no Brasil nasçam em média 3.000 pessoas com essa doença por ano
14:07 | Jun. 19, 2020
Autor Gabriela Feitosa
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Gabriela Feitosa Estagiária do O POVO Online
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Tipo Notícia

Uma das doenças hereditárias de maior incidência no Brasil, a Anemia Falciforme (DF), é ainda pouco conhecida no Ceará, apesar de afetar diretamente a população negra do Estado. A patologia consiste em alteração genética caracterizada por uma mutação na hemoglobina, proteína existente no interior das hemácias cuja principal função é o transporte de oxigênio. Os pacientes com Falciforme geralmente apresentam, nos primeiros dois anos de vida, anemia, atraso no crescimento em desenvolvimento, esplenomegalia (aumento do baço), infecções repetidas e dactilite (tumefação dolorosa das mãos ou pés pela oclusão dos capilares nos pequenos ossos).

Hoje, 19 de junho, é o Dia Mundial de Conscientização da Doença Falciforme (DF). Data foi criada para ampliar o debate sobre a condição.

A médica geneticista Denise Carvalho de Andrade conta que a DF pode ser detectada, inclusive, no Teste do Pezinho. "Esta doença foi incluída no Teste de Triagem gratuito exatamente pelo benefício do seu diagnóstico e tratamento precoces", explica Denise. Ainda conforme a médica, pelo fato de a anemia ser um distúrbio autossômico recessivo, os futuros irmãos de uma criança afetada têm um risco de 25% de também terem a doença e risco de 50% de ter o traço falcêmico.

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Um estudo da Universidade Estadual do Ceará (Uece) em parceria com diversos pesquisadores brasileiros ainda nos revela outro fator importante sobre a doença: a sua maior incidência entre a população negra. A DF apresenta altas incidências na África, Arábia Saudita e Índia. Acredita-se que se a patologia se tornou agravante no Brasil devido o grande contingente da população africana desenraizada para o trabalho escravo no continente Americano.

História

 

Pesquisas históricas revelam que a doença é resultado de uma alteração genética (mutação) ocorrida no continente africano há centenas ou até mesmo milhares de anos. Tal mutação possivelmente ocorreu devido o alto índice da presença da malária naquele continente. A malária é causada pelo protozoário Plasmodium transmitido por mosquitos Anopheles. Acredita-se que o parasita hospedou-se nas hemácias (glóbulos vermelhos) e assim houve a mutação, que modificou a forma arredondada e flexível das hemácias, passando a ter uma forma de foice ou de lua crescente.

Com esta forma "afoiçada", o baço não reconhece as hemácias, que são destruídas antes do tempo e não conseguem fluir livremente, passando a se aglutinar e provocar oclusões dentro do vaso. "Devido a isso, as pessoas com DF sofrem de anemia crônica e fortes dores constantes causadas pela aglutinação das células (crises vaso-oclusivas). A baixa oxigenação do organismo causa lesão de órgãos e tecidos", relata o estudo de 2019.

Na década de 90, os movimentos de negros e negras do Brasil atuaram para que a doença fosse normatizada no Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa forma, direitos essenciais puderam ser conquistados, como implantação do diagnóstico precoce, já existente em outros países. Até 2005 não havia, no SUS, nenhum procedimento estabelecido como conduta ou protocolo para atenção em DF. Somente em agosto daquele ano foram instituídas diretrizes políticas para o enfrentamento à doença.

Ainda de acordo com esse estudo, disponível na íntegra aqui, das regiões do Brasil onde é mais frequente a Anemia Falciforme, sobressaem o Nordeste, Sul e Sudeste. Destaque maior vai para os estados de Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

A DF apresenta tanto um recorte de raça quanto de classe: ela predomina entre a população negra/parda e, na maioria das vezes, esse público apresenta baixa renda e baixo grau de escolaridade, indicando um quadro de vulnerabilidade social.

Detalhes do estudo

O estudo da Uece, intitulado "Doença falciforme: saberes e práticas do cuidado integral na Rede de Atenção à Saúde", é pioneiro por traçar os perfis mais vulneráveis da doença no Ceará.

A pesquisa foi realizada em ambulatório de um hospital pediátrico público, referência no estado do Ceará, situado na cidade de Fortaleza, com consultas para crianças e adolescentes. À época, 240 crianças e adolescentes estavam cadastradas no hospital.

Perfil socioeconômico das famílias dos menores com Falciforme (escolaridade, renda, ocupação, se residem na zona urbana ou rural, se possuem saneamento básico e qual o sexo):

- 35,5% (44/124) não completaram o ensino fundamental, 2,4% (3/124) não estudaram e 2,4% (3/124) possuem ensino superior completo;

- Em relação à renda, a maioria recebia até um salário mínimo, sendo considerado importante referir que
30,6% (38/124) recebiam menos de um salário mínimo por mês, ou seja, menos que R$880,00;

- Ao responderem sobre sua ocupação/profissão no momento da consulta, 62% (77/124) referiram estar desempregados, dentre estes, 75 participantes eram do sexo feminino e se intitularam donas de casa;

- Na zona urbana, moravam 63,7% (79/124) e a mesma porcentagem possuíam saneamento básico em suas residências.


Perfil socioeconômico das crianças e adolescentes (cor da pele, referida pela família; a escolaridade; a faixa etária; procedência (interior ou capital):

- 76,6% (95/124) dos menores eram de cor parda, 16,9% (22/124) brancos, poucos referiram ser pretos ou amarelos e, nenhum referiu ser indígena;
- Mais de 50% eram crianças até 10 anos de idade, desses 34,7% (43/124) tinham até cinco anos e na faixa etária de 11 a 20 anos tinham 41,2% (52/124);
- Quanto à procedência, 59,7% (74/124) eram do interior do estado do Ceará.

Problema de saúde pública

 


Ao O POVO, a enfermeira e professora da Uece que participou do estudo acima, Ilvana Lima Verde, pontuou que a doença Falciforme ainda é pouco conhecida no Ceará. A invisibilidade tem motivo, segundo Ilvana, e não é nenhum segredo: por atingir em maior número negros, população que já sofre com outras formas de racismo estrutural e institucional, a saúde acaba por se tornar outro campo de exclusão. É o que também aponta o médico hematologista Paulo Roberto Souza: "Se a gente não tivesse entidades organizadas, que olhem para essa questão étnica, que fazem pressão, a gente teria ainda menos informações (sobre como a doença atinge negros e negras)".

Paulo também reforça que a DF é um problema de saúde pública e apesar de ser mais incidente em estados como Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, é necessário que o Sistema Único de Saúde (SUS) estenda sua rede de atendimento à todas as regiões. O acesso à saúde de qualidade, a precarização do SUS (que é quem atende esses pacientes de forma gratuita), falta de informação sobre a doença e fraca capacitação dos profissionais de saúde são apontados por Ilvana e Paulo como os motivos que fazem da população negra a mais prejudicada pela doença.

Ciuda Pereira da Silva, 37, que convive com o Falciforme desde os sete meses de vida, ainda acrescenta outra complicação: falta de medicamentos - tão importantes para o tratamento dos pacientes. Hoje, Ciuda é atendida pelo Hemoce, local pelo qual guarda carinho e boas lembranças pelo atendimento que classifica como satisfatório. No entanto, ela afirma não ser assim em unidades básicas de saúde, os primeiros locais a serem procurados. Segundo a funcionária pública, que mora na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), a convivência com a doença recebendo o tratamento correto pode ser tranquila, apesar dos episódios de crises de dor.

No entanto, o tratamento adequado nem sempre é garantido e justamente por isso Ciuda ajuda a construir uma associação dentro do Hemoce que luta pelos direitos de pacientes com Falciforme. "O que a gente busca hoje em dia é maior visibilidade e engajamento da rede de saúde. O que a gente tenta (a associação) é buscar respostas. Nós, enquanto pacientes, temos como prioridade dar continuidade ao nosso tratamento", desabafa Ciuda.

Dar continuidade ao tratamento, no caso de pessoas que têm Falciforme, é garantir o direito à vida. A doença só tem cura através de transplante de medula óssea, que tem inúmeras restrições e diversos critérios por não ser um processo simples e acessível. O hematologista Paulo Roberto Souza recomenda atenção para o tema e alerta que o mais indicado é diagnosticar precocemente a doença e tratar.

Tira dúvidas sobre a Doença Falciforme com Luany Mesquita, diretora de hematologia do Hemoce:

O POVO: O que é a doença Falciforme?

Luana Mesquita: É uma doença causada pela presença de uma hemoglobina anômala, a hemoglobina S, dentro dos glóbulos vermelhos (hemácias), que se forma devido a uma mutação sofrida no gene da hemoglobina normal (hemoglobina A).

OP: Como se adquire?

LM: É uma doença hereditária, passada, portanto, de pais que já possuem a alteração na hemoglobina para os filhos. Para ter a doença, a pessoa tem que herdar dois genes alterados, um do pai e um da mãe. Caso herde apenas um gene alterado e outro normal, ela será apenas portadora de traço falciforme, que não é doença. Além da mutação que gera a hemoglobina S, o gene da hemoglobina pode sofrer outras alterações, que produzem outros tipos de hemoglobina (C, D, beta talassemia, entre outros). A hemoglobina S pode se associar a estas outras hemoglobinas, gerando também doença sintomática. Caso a pessoa herde duas hemoglobinas S, ela será portadora da anemia falciforme. Se herdar apenas uma hemoglobina S e uma outra hemoglobina alterada, é portadora de doença falciforme.

OP: O que a presença da doença causa no organismo de uma pessoa?

LM: Os glóbulos vermelhos dos portadores de doença falciforme, quando expostos a algumas situações como infecções, desidratação, passam da forma normal para forma de foice ou meia-lua. Isso dificulta a passagem dos glóbulos vermelhos nos pequenos vasos sanguíneos, reduzindo a oferta de oxigênio para as células, gerando dores ósseas e lesionando os tecidos. Além disso, essas hemácias em foice sofrem uma quebra (hemólise), causando anemia e icterícia.

OP: Quais são os sintomas e sinais?

LM: Dores ósseas, palidez, olhos amarelos, baixa estatura, baixo índice de massa corporal.

OP: Qual é o tratamento?

LM: O tratamento é baseado em medidas de prevenção a situações que aumentem o risco de descompensação, como estresse, desidratação, esforço físico muito intenso. Além de manter o calendário vacinal em dias para evitar algumas infecções, como pneumonia e gripe. No caso de pacientes que apresentem muita anemia, com necessidade de transfusão sanguínea, crises repetidas de dor óssea, necessidade de múltiplas internações, existe uma medicação que ajuda na redução desses sintomas, que é a hidroxiuréia, que deve ser prescrita apenas com indicação médica, devendo o paciente ter acompanhamento regular devido aos graves efeitos colaterais que ela pode dar.

OP: Como se faz o diagnóstico?

LM: Através do teste do pezinho, ao nascimento. Crianças com mais de 4 a 6 meses e adultos que não realizaram o teste do pezinho, ao apresentarem suspeita clínica de doença falciforme, devem realizar o teste chamado de eletroforese de hemoglobina, que evidenciará a hemoglobina anômala.

OP: Ela afeta mais alguma faixa etária, gênero?

LM: Ela afeta igualmente ambos os sexos, por ter herança autossômica. É mais prevalente na população negra.

OP: Existe alguma forma de evitá-la?

LM: Como é uma doença genética, não existe medidas ambientais que previnam sua ocorrência.

OP: A doença tem cura?

LM: A cura da doença falciforme é possível através do transplante alogênico de medula óssea. Entretanto, devido às possíveis complicações relacionadas a esse tratamento, ele está indicado apenas para uma parcela dos portadores. O principal, portanto, é focar no acompanhamento adequado por equipe multidisciplinar, a fim de evitar complicações relacionadas a doença.

OP: Qual a média de atendimento no Hemoce à pessoas que têm doença Falciforme?

LM: Atualmente o Hemoce acompanha 410 pacientes portadores de doença Falciforme em toda a hemorrede.

OP: Em relação ao tratamento aqui em Fortaleza: onde faz? quanto é? como é o tratamento? dura muito tempo?

LM: Em Fortaleza, as crianças até 18 anos são acompanhadas no hospital Infantil Albert Sabin. Ao completar a maioridade, são transferidas para seguimento no Hemoce. O tratamento é todo ofertado pelo SUS e consiste no acompanhamento do paciente por equipe multidisciplinar (médico hematologista, médico ortopedista, enfermeiro, fisioterapeuta, odontólogo, assistente social, psicólogo, farmacêutico) e deve ser realizado durante toda a vida do paciente. As medicações necessárias são distribuídas pelo Ministério da Saúde através da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias.

OP: É uma das doenças que mais tem prevalência no Brasil, certo? Por que sabemos tão pouco sobre ela?

LM: Apesar de ser a doença genética mais prevalente no Brasil, os dados sobre ela, mesmo no meio acadêmico, são pouco difundidos. É fundamental que haja uma maior divulgação e educação continuada dos profissionais de todos os níveis de atenção à saúde a fim de garantir a atenção integral que esses pacientes merecem.

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