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Tabus, preconceitos e o mito do herói impedem policiais de admitirem transtornos mentais

Em seminário promovido, nesta quarta-feira, 23, pela Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados Brasileiros do Ceará (OAB-CE), foi discutido a questão da saúde mental, suicídio e o trabalho policial
16:09 | Out. 23, 2019
Autor Ismia Kariny
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Ismia Kariny Estagiária O POVO online
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Tipo Notícia

Assim como médicos e bombeiros, o policial é um agente que deve estar sempre à disposição da sociedade. Por ser tênue a linha entre a vida pessoal e o trabalho, há a possibilidade de o estresse físico e psicológico tornar-se um grave problema de saúde para estes profissionais. De acordo com o presidente da Associação de Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (Aspramece), Pedro Queiroz, faltam políticas públicas e equipe multidisciplinar para dar o “acolhimento humano” e suporte psicossocial que a polícia precisa.

Em seminário promovido, nesta quarta-feira, 23, pela Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados Brasileiros do Ceará (OAB-CE), foi discutido a questão da saúde mental, suicídio e o trabalho policial. A presidente da comissão, Sabrina Melo, destacou que neste ano nove policiais militares atentaram contra a própria vida e sete deles consumaram o suicídio. “Percebemos que é um índice crescente e, por isso, estamos disseminando esse debate e estudando uma solução para o problema”, afirma ela.

O debate gira em torno de um problema estrutural. Segundo o presidente da Aspramece, na formação policial não há disciplinas que indiquem como o profissional deve buscar o acompanhamento psicológico, e não existem aparelhos biopsicossociais que possam acolher a polícia e os bombeiros quando se deparam com “situações de alta complexibilidade”. Geralmente, o próprio policial é quem deve admitir a necessidade de afastamento do trabalho, para, por sua própria conta, buscar ajuda psicológica. “O psiquiatra recomenda de 30 a 180 dias de afastamento. Ele vai na perícia, homologa aquilo e vai para casa, para o ócio. Lá o estado não vai acolhê-lo, nem mesmo os próprios pares”, diz Queiroz.

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Segundo o presidente da Aspramece, é necessário que haja uma equipe multidisciplinar, com psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e outros profissionais, nessa área de acolhimento, pois há um número elevado de policiais com licença médica sem receber acompanhamento. “Hoje temos uma grande leva de integrantes nas ruas sob efeitos de medicamentos com tarja preta, porque se eles se afastarem, perdem a remuneração. Eles se obrigam a não tirar licença médica e ficam administrando a medicação, que tem efeitos devastadores”, acrescenta. O presidente alerta também para o perigo de a sociedade ter, no corpo policial - responsável por sua proteção - alguém desequilibrado, que está atuando a partir de psicotrópicos.

Outra questão que merece entrar em debate trata-se da obrigação, determinada por lei, do agente policial estar sempre pronto para atender ocorrências, independente de estar ou não em seu expediente. “Outros trabalhadores no mundo mercantilista não possuem a necessidade de praticar atividades fora do seu horário de trabalho. Já o policial militar não, se ele recusar a agir diante de uma prática criminosa, é punido. Eu acho um absurdo”, opina o presidente da Aspramece.

A psicóloga Rebeca Moreira Rangel, responsável pela assessoria de assistência biopsicossocial (Abips) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), relata que na polícia há uma questão de identidade muito forte. “Se o policial mora em um bairro que todo mundo o conhece, e ali acontece alguma ocorrência, ele poderá ser chamado a qualquer momento”, exemplifica. A psicóloga lembra ainda que, em vários estados do Brasil, os agentes morrem apenas por serem policiais, e isso torna difícil separar a vida profissional da pessoal. “É uma identidade, não um trabalho. É como uma tatuagem que você carrega para o resto da vida”, conclui.

Entre os possíveis indicadores de que a saúde mental dos profissionais pode estar se deteriorando, há mudanças de comportamento, de convivência social e capacidade de atenção, a depender do tipo de adoecimento. Conforme explica a psicóloga, pode haver alteração de humor e até mesmo sobrecarga de trabalho. “Para auxiliar esses profissionais, Rebeca explica que a Abips age pelo cuidado, mas também pela prevenção e sensibilização. “Muitos deles não conseguem perceber que precisam de ajuda, então falamos sobre o adoecimento, o trabalho, e mostramos que eles têm com quem contar”. Contudo, ainda há preconceitos e tabus no meio policial, o que impede agentes de buscarem ajuda.

“É muito comum no cotidiano e nas academias de formação militar, o policial ser tido como um herói, e isso cria uma percepção de que ele é realmente um super-herói, e ele jamais vai admitir em seu consciente que ele precisa de ajuda”, relata Queiroz. Ele revela também que a incidência de drogas ilícitas é muito grande nas corporações, mas que não é possível identificar, pois os colegas não tem coragem de falar da dependência química.

Segundo a psicóloga Rebeca, a resistência ou falta de percepção da própria saúde são reforçados pela falta de uma rede de apoio adequada. “Junto com isso há a ideia de que essas pessoas são heróis, que deveriam estar sempre trabalhando e disponíveis, porque herói é aquele que não adoece”, diz. Agora a SSPDS trabalha para estruturar um serviço que possibilite o acesso à saúde e prevenção para as equipes da polícia civil, militar e o corpo de bombeiros. “Temos há dois anos a Abips, e estamos criando outros setores. São pequenos comparados ao que deve acontecer, mas já é uma mudança”, reconhece.

 

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