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Dragão do Mar e a resistência dos jangadeiros ao longo de 180 anos

Há 180 anos nascia Dragão do Mar, o cearense mais importante na história do Brasil. Jangadeiro e o mar tornaram-se quase um só personagem no campo conceitual formado do Estado, segundo chefe do Departamento de História da UFC
19:52 | Abr. 15, 2019
Autor Rubens Rodrigues
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Rubens Rodrigues Repórter do OPOVO
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Tipo Notícia

Você está na parte 2 da reportagem sobre os 

180 anos do nascimento de Dragão do Mar.

>> O cearense mais importante na história do Brasil (parte 1)

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>> 180 anos depois, que legado resiste? (parte 3)

Centrais na decisão de parar o tráfico interprovincial, os jangadeiros entraram para o imaginário popular cearense. O reflexo é evidente na iconografia, a exemplo da obra do sobralense Raimundo Cela, que ajuda a estabelecer a imagem do pescador e do jangadeiro em quadros como o popular "Rolando a jangada para o mar", de 1941.

Cela faz aparecer em vários trabalhos essa relação do homem com o mar, sempre com luminosa paleta que referencia a Terra da Luz. A expressão marca como um divisor de águas o Ceará depois da ação dos abolicionistas, deixando para trás o obscuro comércio escravocrata.

"Rolando a jangada para o mar" (1941), de Raimundo Cela
"Rolando a jangada para o mar" (1941), de Raimundo Cela (Foto: Reprodução)

O professor Francisco José Pinheiro, chefe do Departamento de História da UFC, afirma que o jangadeiro e o mar tornaram-se quase um só personagem no campo conceitual formado do Estado. Tão populares quanto o vaqueiro - também comumente retratado nas artes - figura importante por conta da pecuária. Ele diz que embora a valorização do jangadeiro tenha passado por grande ascensão naquele contexto político, não demorou para eles retornarem à rotina normal de trabalho.

Para o historiador Airton de Farias, a relação de Chico da Matilde com os jangadeiros fluiu quase como consequência da proximidade do herói com o contexto do litorâneo. "Ele conhecia o mar, a labuta e tinha contato com aquelas pessoas. Chico da Matilde conhecia as dificuldades do homem do mar e sabia dos dramas nas embarcações para o Sudeste", explica. Airton acredita que o contato de Dragão com os escravizados começou ainda cedo, quando passou a trabalhar nas rotas do Nordeste.

Mas comprar a briga do movimento abolicionista significava entrar em atrito com as autoridades, já que o Brasil atravessava uma monarquia escravocrata. "Houve represálias ao próprio Dragão do Mar, ele perdeu o emprego de prático da barra. Até os jornais da época falavam da demissão", conta. "E os jangadeiros transportavam mercadorias para os navios. A partir do momento que eles se recusam a fazer isso, perdem fretes e enfrentam a indisposição dos donos dos navios. Há impacto econômico".

De acordo com o historiador, a greve é apenas um dos episódios que formam a trajetória de luta e resistência das populações pobres. Dragão do Mar vai, inclusive, participar de outra manifestação com os jangadeiros, já no começo do séc. XX. Na época, o serviço militar não era obrigatório e os recrutas eram todos negros e pobres. "Houve um recrutamento no porto e os recrutados eram jangadeiros e a população da praia. Houve protesto, atrito com a polícia e pessoas morreram", conta.

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A greve dos catraieiros (ou portuários) aconteceu em 1904. O movimento eclodiu no dia 3 de janeiro daquele ano, começando com participação dos catraieiros. Aqueles que não aderiram foram forçados a participar. O fuzilamento dos grevistas gerou outro movimento de revolta, resultando na demissão do comandante dos Portos, de quem teria partido a violenta ordem.

A escravidão como consenso social deságua até mesmo em ex-escravos que mantinham escravos. Para se ter uma ideia, não eram apenas homens brancos que escravizavam negros. A imagem de Santo Antônio, por exemplo, antes de ser associada ao "santo casamenteiro" era usada nas promessas para capturar escravos fugidos. "O fato dos jangadeiros terem abraçado a greve mostra que a defesa da abolição também abrange segmentos populares. Supõe-se que essas ideias chegavam à massa. Essa adesão ratifica o pensamento de que havia uma indisposição da sociedade a aceitar a abolição", explica Airton de Farias.

"Eu sou uma bandeira solitária"

Quem entende bem a trajetória de resistência dos pescadores é o presidente da Colônia Z-8 de Pescadores de Fortaleza, Posidônio Soares Filho. Nascido na praia do Iguape, em Aquiraz, ele chegou em Fortaleza aos 4 anos, quando o pai, pescador, saiu da Região Metropolitana para a Capital em busca de melhores dias.

Posidônio Soares Filho, presidente da colonia de pescadores Z-8 na Praia do Futuro
Posidônio Soares Filho, presidente da colonia de pescadores Z-8 na Praia do Futuro (Foto: FABIO LIMA)

"Cada um tem sua própria resistência e meu pai foi um autodidata que fez a primeira jangada de tábua no Ceará. Isso em 1944, na época da Segunda Guerra. Acompanhando, aprendi a profissão de carpinteiro", rememora. "Para mim, meu pai foi referência". Hoje aos 70 anos, Posidônio está no quinto mandato à frente da Colônia Z-8. Eleito democraticamente, gosta de enfatizar, agarrou a bandeira social. "Quando olho para o pescador, vejo mulher, filhos, netos. Ele agrega", diz.

Quem reconhece esse cenário é o pescador Davi da Mata, de 34 anos. Morador do bairro Vicente Pinzon, pesca desde os 12 e foi pai já aos 18. Hoje, sustenta seis filhos. "Tomei gosto pelo mar e não saio mais. A gente passa de dois a quatro dias em alto mar, menos quando o vento não tá legal", relata. "É um trabalho que já foi muito sofrido, e a gente tira o sustento do mar. Eu sou apaixonado pela pescaria. Tá no sangue".

Posidônio Soares diz que o grande problema da categoria é a falta de renovação. A Colônia Z-8 tem hoje cerca de 2.500 filiados. Há duas décadas, esse número passava de 9 mil. "A cada novo afiliado, são três se aposentando", diz.

"O município vê o pescador como uma figura histórica. Nós temos um passado que tem que ser preservado, mas o presente precisa ser valorizado", continua o presidente da Colônia. "Eu sou uma bandeira solitária. Onde eu vou, não tenho como fugir disso porque é um realidade. Sou um otimista, dias melhores virão".

Ele entende a amplitude da figura do Dragão do Mar. "Valoriza o pescador historicamente porque ele rompeu com a violência naturalizada. Foi um divisor de águas, e era um homem do mar", continua. "Valeu a intenção dele de querer o povo livre. O Brasil tem 500 anos, mas não é de educação e nem de cultura. É mais colônia mesmo. Precisamos saber de nós. Das nossas origens, pouco sabemos".

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