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180 anos depois do nascimento de Dragão do Mar, que legado resiste?

Há 180 anos nascia Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar. Em Fortaleza, o Chico da Matilde pode ser visto de diferentes formas. De um lado, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) e mais à frente, o antigo porto da Capital, hoje Ponte Metálica
20:07 | Abr. 15, 2019
Autor O Povo
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Tipo Notícia

Você está na parte 3 da reportagem sobre os 180 anos do nascimento de Dragão do Mar.

>> O cearense mais importante na história do Brasil (parte 1)

>> Dragão do Mar e a resistência dos jangadeiros (parte 2).

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O Dragão do Mar no coração da cidade, cantado por Calé Alencar, pode ser visto em Fortaleza de diferentes formas. De um lado, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), uma área de 14,5 mil m² em uma estrutura arquitetônica concebida pelos arquitetos cearenses Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo dedicada unicamente à Cultura. Mais à frente, o antigo porto da Capital, hoje Ponte Metálica, ponto de saída de homens e mulheres escravizados para as províncias do Centro-Sul.

Oficialmente, o legado de Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, é lembrado em homenagens distintas. Neste ano, o samba-enredo da Mangueira, "História pra Ninar Gente Grande", tratou do protagonismo popular nas lutas sociais a partir de personagens que costuram a história brasileira. "A liberdade é um dragão no mar de Aracati", canta o enredo vencedor.

Mesmo com o reconhecimento em vida e de proporção nacional e internacional, Chico da Matilde morreu no ostracismo. Demorou até que seu nome voltasse a repercutir. De acordo o historiador Airton de Farias, o herói jangadeiro morreu em momento de "profundo isolamento".

"A imagem dele passa a ser lembrada na era Vargas (nos idos dos anos 40 e 50). O getulismo é o primeiro momento em que ele vira memória. E há uma ressignificação do Dragão do Mar, associam ele a um jangadeiro muito humilde, muitos chegando a pensar que ele era escravo", explica. "O uso da memória dele é posterior, pelo menos 20 anos após o óbito".

A antropóloga gaúcha Vera Rodrigues, professora do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), percebe contradição no discurso simbólico que envolve o personagem histórico. "Houve um legado histórico de liberdade com esses personagens, mas não há um legado de cidadania, de responsabilidade social. Como um Estado pode homenagear o personagem histórico e não valorizar a população que vem da origem disso?", questiona.

"Mesmo com o pioneirismo, decretar abolição no papel não é decretar abolição na completude. Não houve política de reparação. Ainda se trabalha num imaginário pela mídia, pela via da história, parece que ocorreu uma liberdade concedida, o que é muito mais estranho. Liberdade não é concessão, é conquista", pontua a antropóloga.

Para a estudante de Humanidades da Unilab e membro do Movimento Negro Unificado (MNU), Geyse Anne da Silva, há uma necessidade de continuidade do trabalho de reafirmar o lugar do negro na sociedade. "O que a gente precisa pensar, para além do simbolismo, é que o Dragão do Mar lutou contra a exploração do corpo negro. O que ele nos deixa é essa resistência. Quando a gente luta contra o racismo na escola, no trabalho, a gente coloca esse legado em prática", opina. "Nós precisamos saber reafirmar nosso lugar na sociedade também por quem há muito tempo já lutava".

História para não se repetir

Traçar narrativas é ponto central para levantar discussões que podem ou não terem sido invisibilizadas nesse processo. No livro "Vende-se uma Família" (Editora Dummar, 2013), a escritora cearense Socorro Acioli narra a amizade entre dois garotos que cresceram juntos e sofreram na pele a crueldade da escravidão no Brasil. A ideia veio da provocação de escrever sobre o herói de Canoa Quebrada. O romance, o primeiro infantojuvenil da autora, evidencia o quão atual é a angústia da senzala.

Já no espetáculo Ceará Show, inovador ao apostar no caráter da permanência, Chico da Matilde, interpretado pelo ator Ilton Rodrigues, fala sobre como a escravidão desumanizou homens e mulheres negras e como até hoje essa tragédia reverbera. "Fazer o personagem é de uma necessidade imensa por levar a história a outras pessoas que gozam de diversos privilégios. A necessidade de conhecer a história do Dragão do Mar é lembrar a todos do que nunca deveria ter acontecido", afirma o ator. "O que Chico da Matilde fez em 1884 foi gritar por liberdade. É preciso gritar até hoje".

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Bate-pronto

Zelma Madeira, coordenadora de Igualdade Racial do Governo do Estado

Mais de um século depois, como a senhora avalia a repercussão do processo abolicionista no Ceará considerando a atuação Dragão do Mar?

É de grande valia a atuação do Francisco José do Nascimento no sentido de mostrar para nós a luta e a resistência negra de um homem que já se importava com as situações precárias e violentas que aconteciam nos porões dos navios. Também é objetivo da luta negra romper com esse modo de operar da escravidão. A gente sabe da perversidade, da violência. Mas a gente ainda sente a necessidade da visibilidade de quem foi Dragão do Mar. Não há muito dialogado numa perspectiva crítica de aprofundamento de quem foi essa personalidade.

E o que ainda preciso ser compreendido?

A gente precisa entender o ato de resistência, da vontade de ruptura, para que a gente não tenha a naturalização. É preciso desnaturalizar esses lugares. Fica o desafio da visibilidade num estado que tem segurado uma carga ideológica pesada de que aqui não tem negros e negras. Nós precisamos dizer que aqui tem negros e negras.

Há um legado além das homenagens oficiais e do simbolismo no discurso?

A gente sabe que a escravidão não é só herança. Ela se recria, se refaz, porque nós temos que conviver com a discriminação, com o preconceito, com as desigualdades. Mas a gente precisa, ao tempo que a gente fala de vulnerabilidade, de representações para dizer que a população negra não é só vulnerabilidade. A população negra no Ceará tem potencialidade porque sempre teve. Nós sempre resistimos, desde o navio negreiro. Essa resistência tem que ser visibilizada. Nós temos que falar dessa resistência negra como forma de empoderar essa população que sabe resistir. Hoje, no Ceará, que outros Dragões do Mar existem fazendo história e tentando superar o racismo? Nós precisamos construir o Ceará da igualdade racial, que leva em consideração a diversidade étnico racial e que combata o racismo.

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