Navio no Porto do Pecém pode ajudar com a crise energética; entenda

Com níveis reduzidos de água em bacias, o acionamento de termelétricas tem sido a solução para evitar um colapso energético; especialistas apontam que falta de investimentos no setor elétrico é um dos fatores para agravamento do quadro

Uma das soluções para a crise energética do País, com impactos nacionais, está a cerca de 54 quilômetros de Fortaleza, no Porto do Pecém. Conforme nota técnica divulgada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a melhoria das condições nacionais para geração de energia pode ser beneficiada pela viabilização de mais um navio regaseificador — que transforma o combustível líquido em gasoso — no porto, localizado entre os municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza.

Por meio da medida, seria possível ter um fluxo mais contínuo de combustíveis a serem queimados nas usinas termelétricas e, assim, produzir mais energia. Isso acontece porque, com o baixo nível de reservatórios de água, o País está precisando acionar as usinas térmicas para manter a produção em larga escala, ainda que isso torne o valor do insumo mais caro e torne a atividade mais danosa ao meio ambiente.

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Tomaz Nunes Cavalcante Neto, professor do Departamento de Energia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em eficiência energética, explica que a recomendação do ONS para o Pecém é para que as termelétricas possam operar com uma maior segurança, não havendo impedimentos para o momento em que elas precisem funcionar de forma mais intensa e contínua.

O especialista considera que essa é uma medida efetiva para o controle da crise e é plausível para ser colocada em prática, até porque o Porto do Pecém foi planejado para receber esse tipo de operação, de acordo com ele. “Essa é uma recomendação técnica para que isso ocorra. Vários órgãos do governo federal vão ter isso em mãos e colocar em prática”, detalha Cavalcante Neto.

Em pronunciamento em cadeia de rádio e televisão nesta terça-feira, 31, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, explicou que atualmente o País está tendo que arcar com custos tanto para o funcionamento das termelétricas como para a importação de energia de países vizinhos. Ele pediu o envolvimento de toda a sociedade para que apagões e um possível racionamento de energia seja evitado nos próximos meses.

“É por isso que, nesse momento de escassez precisamos, mais do que nunca, usar nossa água e nossa energia de forma consciente e responsável. Com esse esforço, aliado ao conjunto de medidas que o governo federal vem adotando, seremos capazes de enfrentar essa conjuntura desafiadora. Uma conjuntura que será tão mais favorável quanto mais rápida, intensa e abrangente for a mobilização da sociedade para enfrentá-la”, argumentou Albuquerque no pronunciamento.

A possibilidade de racionamento de energia também preocupa Gilmar Lopes Ribeiro, engenheiro elétrico e professor da área de eletrotécnica do campus de Fortaleza do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). O docente pondera que as medidas tomadas pelo governo estão atrasadas, e poderiam ter sido implementadas com mais antecedência. A realização de campanhas para que a população economize energia, por exemplo, demanda tempo para que possa surtir efeitos práticos, conforme o pesquisador.

“É muito possível que nós tenhamos um racionamento de energia, que é compulsório e obrigatório. O governo precisa agir rapidamente, porque a crise é muito séria”, enfatiza Ribeiro. Ele ainda considera que medidas anteriores, como a extinção do horário de verão, são fatores que intensificaram o cenário que o País enfrenta atualmente. “É preciso que chova bastante até o fim do ano para que a gente possa repor os reservatórios. Caso isso não ocorra, a gente pode ter um acúmulo de problemas”, alerta.

Baixos níveis de água em reservatórios atrapalham geração energética no País

Os níveis de água nos reservatórios estão consideravelmente inferiores em julho deste ano, quando comparado ao mesmo mês de 2020. No caso do Nordeste, por exemplo, a porcentagem caiu de 82% para 54%. Ainda assim, os volumes podem ser considerados altos em relação a outras regiões, como o Sudeste e Centro-Oeste, que juntos tiveram uma redução de 48% para 26%, além do Sul, com queda de 58% para 47%. Ambos casos representam o pior momento da série histórica, conforme dados do ONS.

Cavalcante Neto explica que uma quadra chuvosa dentro da média é fundamental para recomposição dos níveis de água e uma maior eficiência das hidrelétricas. “Se não tiver, fica muito difícil. Temos que torcer para que São Pedro nos ajude”, pondera o especialista, lembrando que a matriz hidrelétrica é a principal para a geração de energia no País. “O grande desafio é primeiro chegar em novembro com água. Uma hidrelétrica com menos de 12% tem dificuldade ou não tem capacidade de gerar energia”, detalha.

No Ceará, 100% do território segue com seca, ainda que a área atingida não tenha crescido entre os meses de junho e julho deste ano. Nas demais federações do Nordeste, foi registrada expansão da seca grave no Rio Grande do Norte e na Paraíba, assim como o avanço da seca moderada no Piauí. Já na Bahia ocorreu intensificação do fenômeno no centro e no sul do estado, passando de seca moderada para grave.

No restante do País, a seca segue em expansão em todos os estados do Sudeste, devido à continuidade de registros de chuvas abaixo da média. Sul e Centro-Oeste também enfrentam os fenômenos, com aumento do avanço da seca grave no Paraná, em Goiás e no Mato Grosso do Sul. A região Norte, por sua vez, segue apenas com um estado monitorado, o Tocantins, onde secas moderada e grave seguem avançando no centro e no sul do estado.

As informações são de dados compilados de julho do Monitor das Secas. A iniciativa, coordenada pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), com o apoio da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), visa o acompanhamento contínuo do grau de severidade das secas no Brasil com base em indicadores do fenômeno e nos impactos causados em curto e/ou longo prazo.

A maior expectativa de chuvas no Sudeste e Centro-Oeste — onde fica concentrado 70% das reservas hídricas do País para geração de energia — é esperada para os próximos meses. No entanto, a projeção de especialistas do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) ouvidos pela CNN Brasil é que as precipitações não serão suficientes para melhorar o nível de água nos reservatórios. “As entradas das frentes frias não serão muito frequentes e com isso não terá um padrão muito regular”, aponta a meteorologista Morgana Almeida em entrevista à emissora.

Em nota técnica divulgada na última semana, o ONS também relatou a preocupação com a escassez de chuvas. “Ao longo dos últimos anos, a precipitação observada em algumas das principais bacias hidrográficas integrantes do SIN (Sistema Interligado Nacional) tem se mostrado significativamente abaixo da média histórica. O déficit de precipitação acumulado nos últimos 10 anos em algumas bacias chega alcançar um valor maior do que o total de chuva que ocorre em média em um ano”, enfatiza o órgão.

Diversificação de matrizes energéticas e investimento na infraestrutura devem evitar novas crises, aponta pesquisador

É possível pensar no setor elétrico de forma parecida com uma carteira de investimentos financeiros: quanto mais diversificado, maior se torna a segurança caso um dos componentes não esteja em seu melhor momento. Atualmente, como temos uma significativa dependência das hidrelétricas — forma de geração de energia renovável com baixo custo — acabamos ficando prejudicados quando os níveis dos reservatórios estão baixos e não são capazes de gerar energia suficiente. A partir daí, a solução corrente é acionar termelétricas, com alto custo e danos ambientais mais impactantes.

O professor Francisco Kleber de Araújo Lima, do Departamento de Engenharia Elétrica da UFC, argumenta que um maior investimento em energias eólica e solar, por exemplo, poderia auxiliar em períodos em que há poucas chuvas. “Quando há maior produção dessas energias complementares é justamente quando a hidrelétrica está em baixa e vice-versa. Conseguimos ganhar muito com essa sazonalidade”, aponta o especialista.

De acordo com dados do ONS, a parcela de energia produzida com energia eólica nessa terça-feira, 31, corresponde a 21% do total produzido em todo o País. O número é quase metade do produzido por hidrelétricas (46%) e mais de dois terços da energia gerada por termelétricas (29%). Considerando apenas o Nordeste, a energia eólica chega a representar hoje cerca de 60% a mais do que o somatório da geração hidráulica e térmica.

Para o professor Gilmar Lopes Ribeiro, é necessário que o planejamento do setor elétrico brasileiro seja muito bem estudado e leve em conta todos os aspectos que estamos passando. “A crise pode nos ensinar, nos abrir os olhos para momentos futuros. O País não pode deixar de considerar a energia para obter o desenvolvimento econômico”, argumenta o especialista. “A construção de uma hidrelétrica, por exemplo, leva mais de 10 anos para ficar pronta e os impactos ambientais precisam ser muito bem analisados”, enfatiza.

Os investimentos no sistema também precisam atingir a infraestrutura, como as linhas de transmissão de energia, conforme explica o professor Araújo Lima. O especialista detalha que em alguns casos as fontes geradoras de energia precisam reduzir sua capacidade de produção porque já atenderam sua demanda local e não têm como exportar o insumo para outros lugares por falta de equipamentos.

“Isso hoje é o nosso calcanhar de Aquiles, as nossas fontes não estão mal, nós evoluímos bastante nos últimos anos. Mas não adianta ter uma matriz reforçada, se não há como escoar essa energia”, analisa. “Com esse aperfeiçoamento, nós podemos ter grandes produtores auxiliando pequenos centros de energia que estejam precisando de um reforço em determinados momentos”, conclui.

O POVO procurou o ONS na última quinta-feira, 26, para responder questionamentos sobre as medidas propostas, mas não recebeu retorno até a publicação desta matéria.

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