Documentos do período colonial cearense são restaurados no Arquivo Público
Acervo restaurado contém documentos datados do final do século XIX; publicações guarda mapas e lista de nomes de pessoas escravizadas no Estado
Um trabalho de restauração documental está sendo realizado no acervo do Arquivo Público do Estado do Ceará (Apec) para preservar a memória e a história do período colonial cearense. Iniciada no dia 5 de novembro, a restauração está prevista para acabar na próxima sexta-feira, 13. Entre os documentos recuperados, constam mapas do Governo da Província do Ceará e listas de nomes de pessoas escravizadas para serem libertadas.
O trabalho de restauração ficou a cargo dos 15 alunos do curso de Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais, da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho (EAOTPS).
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A coordenadora pedagógica da escola conta que o foco dos trabalhos de conservação promovidos pela instituição visam salvaguardar a memória do Estado.
“Depois, a gente tem que saber como foi construída essa história, porque tá se perdendo. Então, a gente faz esse trabalho para mantê-la viva; porque é muito bom eu saber de onde eu vim, que aí eu vou ter uma identificação. Saber que eu faço parte dali, traz aquele sentimento de pertencimento; eu vou cuidar, eu vou zelar e eu vou passar para as futuras gerações”, explica.
As etapas da restauração incluem a higienização; remoção de colas, obturações, enxertos e resíduos; encadernação e acondicionamento. Os documentos, em sua maioria datados do final do século XIX, contêm manuscritos emitidos por uma Junta Classificadora de Escravos, cuja leitura remete a um passado de violações.
As anotações registram os nomes dos escravizados, idades, profissões, entre outras informações. Outras escrituras, como jornais e periódicos do início do século XX, também estão passando por procedimentos de higienização.
Aos 25 anos, a bibliotecária Raquel Julião, aluna do curso Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais, conta que o interesse pela área de restauro surgiu ainda na época da graduação. Para ela, ser selecionada para participar da formação é um privilégio e compõe uma experiência enriquecedora.
“A gente tá lidando com documentos que contam a nossa história, então fica uma sensação de privilégio e também uma busca para que mais oportunidades como essa aconteçam. Contribui com o senso de pertencimento, porque a gente passa a entender mais a nossa história como população, a história do nosso Estado”, avalia.
A participante revela ainda que ter acesso ao conteúdo dos documentos relativos aos mapas contendo informações sobre os escravizados a serem libertados foi impactante.
“É como se fosse quase um recorte histórico ali na nossa frente, porque a gente vê como as pessoas, o ser humano, era desumanizado. Era basicamente só um número, não era uma pessoa. E você ver isso é triste, muito triste. Mas, a gente ganha uma noção de que estamos restaurando, dando uma nova vida para esse documento, para que as pessoas entendam e tenham conhecimento desse tipo de informação, para que coisas como essa jamais voltem a acontecer”, conta.
A analista de gestão cultural do Apec e aluna do curso de Conservação e Restauração, Thayane Maciel, ressalta a importância de aprender as técnicas para garantir a maior durabilidade dos documentos. Ela relembra que o Arquivo Público do Ceará é um equipamento público que pode ser visitado por qualquer pessoa. O acesso aos documentos é feito por meio de um agendamento.
“São técnicas que, por mais que pareçam simples, fazem diferença. A curto prazo pode não parecer nada, mas, a longo prazo, faz bastante diferença esse tipo de cuidado; tanto dos pequenos reparos, quanto da higienização e do acondicionamento”, orienta.
O trabalho de restauração foi coordenado e supervisionado pelo restaurador Luiz Evi Braga. “São documentos que marcam um tempo de abolição. Então, são documentos que, ao mesmo tempo que marcam esse ponto histórico, são doloridos. Quando você vê, pode ter parentes seus nessa listagem”, pontua.
Documentos guardam a história do povo cearense
Ao brando de Francisco José do Nascimento, mais conhecido como Dragão do Mar, o Estado do Ceará se tornou a primeira província brasileira a abolir a escravidão. No dia 25 de março de 1884, quatro anos antes da promulgação da Lei Áurea, cerca de 30 mil cativos tiveram a liberdade concedida na então província.
O marco fez com que o Estado fosse conhecido como Terra da Luz. Herança direta dessa luta, a turismóloga Naiara Moura confessa que foi pega de surpresa ao ser selecionada para o curso. Ela conta que, entre os documentos ao qual teve acesso, há uma lista com nomes de pessoas que foram libertadas durante a emancipação do Ceará, de 1882 a 1884.
Sorteada para trabalhar na restauração do material dos anos de 1882 a 1883, a participante conta que se deparou com a lista de escravizados da Vila de Imperatriz, atual Itapipoca. Entre os nomes, três chamaram sua atenção. “Eu encontrei três Marianas, mas eu não tenho como ter certeza se uma delas pode ser minha tataravó, porque não tem o sobrenome para comprovar”, revela, frisando que pretende continuar a busca pela confirmação das informações.
O encontro motivou a aspirante a restauradora a se dedicar ainda mais ao trabalho de restauração daquele material. “Foi algo emocionante trabalhar com esses documentos. Eu me dediquei ao máximo para poder fazer um bom trabalho, porque eles vão servir de pesquisa para as próximas gerações”, reflete.

Para Naiara Moura, esse trabalho é importante para evitar o apagamento histórico desse período. “Tem muita gente que acha que não existiu no nosso Estado. Mas, é um momento não só importante para o Ceará, mas para o Brasil; porque o Ceará foi a primeira província a libertar os escravos e isso faz parte da minha história”, ressalta.
A turismóloga explica que a história de seus antepassados sempre foi um assunto que repercutiu na família. Ela conta que é difícil mensurar em palavras a importância de trabalhar na restauração desses documentos. “É emocionante e delicado”, revela.
Para ela, o profissional e o pessoal se misturaram em meio às memórias documentadas nos manuscritos. “Eu vim desse passado. Saber o passado é importante para a gente aprender a lidar com o futuro e fazer com que esse tipo de coisa nunca mais aconteça”, anuncia.
Naiara Moura conta que a avó sempre foi uma grande incentivadora no que se refere aos estudos e à preservação da história da família. “Ela sempre incentivou a gostar de estudar e a preservar a história. E eu aprendi com ela que a antepassada dela foi escrava e ela nunca teve vergonha de dizer isso. E eu tive essa oportunidade e agarrei com unhas e dentes, para preservar esses documentos e fazer com que eles durem o máximo possível”, enaltece.
“Existe essa preocupação com o resgate do passado entre eles, apesar de serem pessoas muitas vezes simples, do interior. Mas, eles têm essa preocupação em preservar o passado. Embora não seja na forma escrita, é falada. Então, eu tô homenageando esse resgate que eles passaram para mim”, explica.
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