Existências legitimadas: relatos de trans e travestis que retificaram documentações

Um total de de 206 pessoas desse grupo foram beneficiadas no mutirão Transformar, recebendo novas certidões de nascimento e dando entrada na emissão de Registro Geral (RG) retificado

12:33 | Jul. 01, 2023

Por: Gabriela Almeida
Pose para fotos no Mutirão Transformar, realizado pela Defensoria Pública do Ceará para retificação de nomes de pessoas trans e travestis, com emissão de novas certidões de nascimento e de carteiras de identidade (foto: Zé Rosa | DPCE)

Mais de duas centenas de pessoas trans e travestis no Ceará foram dormir nesta sexta-feira, 30, com a existência legitimada em suas documentações. Por meio do Mutirão Transformar, realizado pela Defensoria Pública do Estado (DPCE) –, o grupo recebeu novas certidões de nascimento e deu entrada na emissão de Registro Geral (RG) retificado. Iniciativa abre portas para quem sempre as teve fechadas.

Essa foi a segunda edição da ação, que é realizada pela entidade pública, e beneficiou 206 pessoas aproximadamente. O evento ocorreu de forma simultânea em Fortaleza, no Crato e em Sobral.

Dentre as pessoas que se beneficiaram com o serviço oferecido esteve Emilly Braz de Oliveira, de 18 anos. A jovem se descobriu como uma mulher transexual quando ainda era uma menina de 15 anos. O processo de transição, em suas palavras, foi "complicado", "difícil", exigindo dela uma coragem libertadora.

"Soltar isso (falar sobre ser transexual) para o mundo foi bastante complicado. De pouco em pouco eu fui soltando para os meus amigos, fui me conhecendo, falando para meus familiares (...) Minha mãe, no começo, não aceitava de jeito nenhum, sempre procurava um motivo para me julgar, e hoje em dia ela super me apoia", conta a jovem, dizendo ainda que sempre teve o apoio da madrinha durante essa jornada.

Desde que se descobriu sendo quem verdadeiramente é, o nome que carregava em suas documentações passou a ser um motivo de constrangimento, pois era como apresentar alguém que já não mais existia.

"Sentia muita vergonha de mostrar minha documentação antiga e muitas das vezes nem mostrava, dizia que esquecia, quando na verdade estava comigo. Nunca deixei de andar nos lugares, mas mentia dizendo que não estava com a documentação, porqueo era um constrangimento enorme", relembra Emilly.

Ela pesquisou sobre o processo de retificação, mas descobriu que teria que pagar para realizar o procedimento. Sem condições financeiras necessárias, a mudança tornou-se um desejo inviável para a jovem.

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"Eu pesquisava sobre (a retificação do nome) porque eu queria muito, mas eu não procurava por agora, porque até então eu só sabia que tinha que pagar e não tenho condições de pagar a troca dos meus documentos", conta a jovem, que atualmente está desempregada.

Homenagem a Jesus

Assim como Emilly, Jesus Da Silva Luz também já cansou de se sentir constrangido ao ter que mostrar a antiga documentação, com um nome que não correspondia a sua identidade. Identificando-se como homem trans, o jovem conta que passou por um processo de transição difícil.

"Eu sempre soube que era um homem trans, mas pela falta de informações resolvi me assumir uma pessoa gay aos 13 anos de idade e, com a ajuda de terapia, e também buscando mais informações a respeito, foi que criei coragem de me assumir homem trans", relata o jovem, que não teve apoio da família.

Apesar de não se considerar religioso, mas "espirituoso", ele conta que escolheu o nome em homenagem a Jesus Cristo, além de combinar com o seu sobrenome. Depois desse processo, o auxiliar de serviços gerais passou pelo menos quatro anos buscando retificar suas documentações, mas nunca teve êxito.

Identidades legitimadas: caminhos que se cruzam e se abrem

Jesus da Silva encontrou a possibilidade de realizar o seu desejo quando descobriu que ocorreria o mutirão da Defensoria Pública do Ceará (DPCE). Foi quando a sua história se cruzou com a de Emily e com outras pessoas que ansiavam, algumas até por anos, apresentar um documento que legitimasse a forma como querem ser chamadas. 

"Estou sentindo um misto de emoções positivas. A retificação para mim está sendo um sonho, assim como para os demais. Estou muito grato também a todas as equipes da Defensoria, como também às Mães da Resistência e em especial à Gioconda e ao seu Irapuan, porque sem eles nada disso estaria sendo possível a mim e a todos", disse Jesus, falando sobre pessoas e entidades que o auxiliaram no processo. 

Emily Braz compartilha um sentimento parecido. "Hoje eu pude pegar minha nova certidão, minha nova identidade. Ainda não caiu a ficha de que isso tudo aconteceu. Foi tão incrível. Tá sendo tão incrível", afirmou a jovem, que agora não vai mais se sentir constrangida e poderá se apresentar como quem de fato é.

A história dos dois jovens também se cruzou com a de Fran Costa de Castro, que esteve nos bastidores da organização do projeto e ao mesmo tempo ao lado dos beneficiados. Isso porque ela, que é colaboradora da Assessoria de Relacionamento Institucional (Arins), da DPCE, também retificou documentos no mutirão.

Representante, que tem 38 anos, conta que nunca teve "gana" de tentar o processo porque para realizá-lo é preciso apresentar diversas certidões. Etapas, além de custarem "tempo", custam "dinheiro", que para muitos é o que mais inviabiliza a retificação.

"O mutirão (da Defensoria) é um facilitador de processo porque existe uma equipe que está empenhada em reunir essas documentações. Existe um trabalho feito pelo mutirão, pelas pessoas que fazem o mutirão, que e muito benéfico para gente, porque corre atrás dessas certidões", explica.

 

Ela aproveitou o momento e se juntou às centenas de pessoas que buscavam pela garantia do direito. Ao passo que atuava para facilitar os caminhos dos demais beneficiados, Fran também terminou o dia com uma certidão de nascimento que a permitirá se apresentar sem ser constrangida. 

"Agora não há desculpa (para lugares não aceitarem documentação). Poder andar com o RG que tem seu nome, poder chegar num estabelecimento de saúde, de educação e apresentar esses documentos e esse documento estar na chamada, e esse nome estar no cartão do seu banco. Simbolicamente é muito importante, é muito revolucionário", comemorou a representante, sobre a sensação de ser uma das vidas travestis beneficiadas.

No fim do dia, o sentimento de Fran variava entre o cansaço de quem deu a mão para ajudar o outro e a alegria de quem foi auxiliada. "Estou muito cansada, mas até o presente momento eu tô muito emocionada, eu tô muito feliz", desabafou, afirmando não saber descrever a sensação.