Entidades LGBTQI+ apelam contra suspensão de vestibular para trans na Unilab
Presidente Bolsonaro criticou edital no Twitter e suspendeu o vestibular em julho de 2019; entidades consideram a revogação transfóbica
Entidades representativas da comunidade LGBTQI+ entraram com apelação contra a revogação do vestibular voltado para pessoas trans e intersexuais na Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). O edital foi suspenso em julho de 2019, após críticas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Twitter e pressão do Ministério da Educação (MEC), à época gerido pelo ministro Abraham Weintraub.
Na ocasião, os campi do Ceará e da Bahia da Unilab estavam com 120 vagas remanescentes, ou seja, que não foram preenchidas por vestibulares anteriores. Para que as vagas não fossem perdidas, a instituição decidiu abrir um vestibular específico para estudantes transsexuais, travestis, intersexuais e não-binárias.
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No entanto, ao saber da existência do edital, o presidente Bolsonaro anunciou a suspensão imediata dele em publicação no Twitter. A postagem ressaltou a “intervenção do MEC” na decisão da Unilab de então revogar o vestibular:
A Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Federal) lançou vestibular para candidatos TRANSEXUAL (sic), TRAVESTIS, INTERSEXUAIS e pessoas NÃO BINÁRIOS. Com intervenção do MEC, a reitoria se posicionou pela suspensão imediata do edital e sua anulação a posteriori.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) July 16, 2019
De acordo com o advogado Paulo Iotti, presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), a fala de Bolsonaro e a revogação foram “intencionalmente transfóbicas”. Além disso, a União teria violado a autonomia universitária da Unilab, que pode abrir editais específicos para atender grupos historicamente estigmatizados. Afinal, explica Iotti, o fato de a universidade ser federal (como destaca Bolsonaro no tweet) não anula a autonomia dela.
A apelação foi movida pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e pelo GADvS.
Direito a vestibular específico
Uma das justificativas da União para suspender o edital foi de que não existe lei que expressamente permita cotas para pessoas trans, assim como existe para grupos étnicorraciais. No entanto, as entidades da apelação pontuam que esse argumento ignora precedentes e os princípios da igualdade e não discriminação.
De acordo com Iotti, o Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu a constitucionalidade das cotas identitárias a grupos sociais vítimas de discriminações estruturais, sistemáticas, institucionais e históricas. Nesse sentido, a secretária de articulação política da Antra, Bruna Benevides, relembra alguns dados que reforçam a vulnerabilização de pessoas trans e seu direito à reparação histórica.
Segundo a União Nacional LGBT, o tempo médio de vida de pessoas trans no Brasil é de 35 anos - enquanto a da população geral é de 75,5 anos. De acordo com boletim da Antra, o País registrou 151 assassinatos de pessoas trans nos primeiros dez meses de 2020, 22% a mais que em 2019 inteiro (com 124 assassinatos). Por serem excluídas socialmente, 90% das pessoas precisam recorrer à prostituição para ter renda. E na educação, 70% não têm ensino médio. Os últimos dados também são da Antra.
“Não é nem cota, é um vestibular específico [para vagas não preenchidas]. Aí pensaram [a Unilab] na população trans exatamente pela dificuldade de inserção no ambiente acadêmico”, frisa Bruna. À época, a Antra chegou a promover uma campanha intitulada Nós queremos estudar e o presidente não deixa, com o objetivo de destacar a arbitrariedade de impedir o acesso ao vestibular. “Essas vagas estão em um limbo. Elas não foram ocupadas de fato”, lamenta.
Expectativas da apelação
“Eu tenho grande confiança que a gente vai ganhar. Nem que seja no STF, mas vou recorrer até o fim da vida”, declara o advogado Iotti. Na interpretação dele, todos os fatos favorecem a apelação e indicam arbitrariedade do Governo Federal.
Para a Antra, a expectativa é de reverter os efeitos da suspensão do vestibular e avançar um pouco mais na luta por acesso e permanência na educação. Bruna frisa que existe um processo de expulsão simbólica já no ensino básico por causa do preconceito e da recusa das instituições em acolher crianças trans.
“Quem é que já estudou com uma travesti, ou com um homem e mulher trans?”, questiona. Violências simbólicas, mas marcantes, como a negativa em usar o nome social dos estudantes, ou impedir que acessem as estruturas equivalentes à identidade de gênero delas, vão expulsando as crianças. “Chamam de evasão escolar, mas não é evasão. É expulsão”, firma Bruna.
Caso as entidades vençam a apelação, o valor de um milhão de reais do processo será destinado para um fundo estatal de direitos humanos. Após decisão de colegiado, esse dinheiro será destinado para entidades ou organizações não governamentais, provavelmente voltadas ao público LGBTQI+.