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"MP da grilagem": como atuam os grileiros e de que forma indígenas e meio ambiente podem ser impactados

Chamada de "MP da grilagem" por grupos contrários ao que ela propõe, a MP recebe esse nome em referência à prática de "grileiros", que colocam escrituras falsas - atestando posse de território público - dentro de uma gaveta com grilos para que fiquem amareladas e com aparência velha

A medida provisória (MP) 910/2019, que dá direito a ocupantes irregulares de terras públicas se tornarem proprietários após determinado período de ocupação, tem vencimento no dia 19 de maio. Até lá, apesar de não ter sido votada na Câmara dos Deputados, deve ser analisada no Congresso como Projeto de Lei. Assinada em 10 de dezembro de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro, a medida altera lei de 2009, que "dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União". 

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Chamada de “MP da grilagem” por grupos contrários ao que ela propõe, a MP recebe esse nome em referência à prática de “grileiros”, que colocam escrituras falsas - atestando posse de território público - dentro de uma gaveta com grilos para que fiquem amareladas e com aparência velha, assim criando um documento que pareça legítimo para constatar a posse sobre terras públicas.

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Segundo a advogada Beatriz Azevedo, especialista em Direito Ambiental, essa medida representa a possibilidade de se regularizar a invasão de grupos criminosos. De acordo com ela, a grilagem é feita por meio de grupos que ocupam terras na Amazônia e outros biomas após realizarem desmatamentos e incêndios. Uma vez destruída a terra, eles colocam uma família lá dentro como “laranjas” para cuidar de plantações e em cinco anos conseguirem tornar a área sua propriedade. “Eles conseguem o título por aquela terra, às vezes falso, às vezes por forma de troca de favores”, afirma.

Com a falta de demarcação e fiscalização efetiva, é preciso ser compreendido o problema no contexto de esvaziamento dos órgãos de fiscalização ambiental e proteção ambiental. Segundo Beatriz, já não está havendo fiscalização efetiva onde as terras estão sendo demarcadas. “Mesmo que seja em área de conservação essa fiscalização não é eficiente”, pontua. “Isso gera um série de complicações. O momento político do Brasil está fazendo com que a fiscalização seja perseguida. Fiscais que fazem alguma coisa estão sendo realocados, exonerados, por conta dessa perseguição do Governo Federal”, afirma.

Indígenas e quilombolas

A MP 910 é desleal com quilombolas e indígenas, já que grande parte das terras desses grupos não estão demarcadas e ainda em processo de reconhecimento do território. “Se um grileiro vai e ocupa essas terras, a comunidade indígena não pode fazer nada, porque ela não tem ainda o reconhecimento de território. E mesmo quando há o reconhecimento ele diz que a terra é deles e sobrepõe a propriedade deles à terra indígena”, pontua Beatriz.

A votação da medida em um momento de pandemia é vista como equivocada pela advogada ambientalista. “Passa a ideia de que que tá tudo bem você ocupar, porque daqui a cinco anos vai vir uma nova lei que vai te dar o título da terra”, afirma. “Não tem porque um assunto desses ser discutido no meio de uma pandemia, em que a sociedade fica impossibilitada de participar. Deve ser feito em um rito minimamente democrático. Os diversos setores da sociedade precisam ser escutados”, diz.

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Para José Ricardo, coordenador estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Ceará (MST Ceará), a PL não se justifica na esfera social, econômica e nem política para ser colocada em pauta enquanto ocorre a crise sanitária do novo coronavírus. Ele acredita que a medida irá beneficiar apenas os que detêm monopólio da terra, como o agronegócio. “Ela vai expulsar os verdadeiros posseiros que já trabalhavam nessa terra produzindo e consumindo durante toda sua vida. A medida vai atender ao agronegócio e àqueles que sempre exploraram o território brasileiro, e provoca a possibilidade de grande desmatamento”, diz.

Se aprovada, não só na amazônia, mas diversos biomas brasileiros, como caatinga e cerrado, poderiam ser afetados.“Será um afronta à sobrevivência e a soberania de milhões de pessoas principalmente no território da Amazônia, mas também em todos os biomas do país”, afirma.

Segundo Jeovah Meireles, biólogo e professor do curso de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Amazônia já possui quase 1 milhão de quilômetros quadrados de área degradada. Com a aprovação da MP, aproximadamente 70 milhões de hectares ocupados de forma irregular por madeireiras, grandes mineradoras e grandes plantações de monocultivo em todos os biomas seriam regularizados. 

Dentre as consequências estão sócio-ambientais e econômicas, por conta do modelo de privatização de terras públicas de maneira inadequada, segundo Jeovah. ”Tem um propósito claro de ampliar a indústria e os agrotóxicos, tendo como consequência direta perda de biodiversidade a contaminação das águas e perda dos solos”, diz.

Tudo isso implica em consequências para as comunidades indígenas, que sofrem pressões desproporcionais com relação às demais outras classes, sendo compulsoriamente expulsa de seus territórios. “A mineração promove seríssimos problemas de contaminação da água, do solo, das pessoas e do animais que têm essa relação de vida com a floresta”, finaliza.

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Danos irreversíveis

A organização World Wide Fund for Nature (WWF), em estudo de 2018, afirma que 20% da Amazônia no Brasil já foi desmatada desde 1970. De acordo com Beatriz, se a floresta atingir um determinado ponto — cerca de 25%, conforme o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas — passa a se “savanizar”. O termo usado por ela faz referência à cobertura vegetal conhecida como savana, onde altas temperaturas são atingidas. Segundo ela, o processo de savanização se tornará irreversível. “Ela vai perder a capacidade de produzir as próprias chuvas e se retroalimentar dentro do seu ciclo ecológico”, diz.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam que em 2019 foram 87.178 queimadas registradas na Amazônia. Isso representa um aumento de 30% em incêndios quando comparado com o ano anterior, que foi de 68.345. O número é o quatro maior da década de 2010, que tem como maiores números de focos: 134.614 em 2010, 106.438 em 2015 e 107.439 em 2017.

Quanto as áreas queimadas, foram 70.698 km² até novembro de 2019, sendo também o quatro maior registro da década em extensão territorial degradada. Em terceiro lugar fica o ano de 2017, com 91.240 km²; em segundo o ano de 2015, com 93.677 km²; e em primeiro o ano de 2010, com 112.814 km².

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