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"Brasil não disse que não quer o turista LGBT. É coisa de uma só pessoa"

Coordenador da principal associação de promoção do turismo LGBT no mundo ressalta a importância políticas públicas voltadas para o desenvolver o segmento
17:01 | Jun. 15, 2019
Autor Émerson Maranhão
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Émerson Maranhão Jornalista e realizador audiovisual
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Tipo Notícia

ESPECIAL
ESPECIAL (Foto: O POVO ONLINE)

Há 40 anos, Clóvis Casemiro faz do turismo seu ofício e missão. Ao longo destas quatro décadas, acumulou experiência em várias áreas do segmento, tendo atuado em agências de turismo, hotelaria, empresas oficiais e privadas, com direito a uma temporada morando em Fortaleza, no começo dos anos 2000. Há cerca de quatro anos, ele é o coordenador no Brasil da IGLTA, a mais tradicional e importante associação para a promoção do turismo LGBT no mundo.

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Recentemente, Clóvis esteve de volta à capital cearense para participar de um evento e concedeu esta entrevista exclusiva ao O POVO Online. Na conversa, ele fala da importância do segmento LGBT para o turismo internacional, comenta a polêmica declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre não desejar a presença de turistas LGBT no País e aponta a necessidade de esclarecer que esse nicho não tem nada a ver com o turismo sexual. Confira os principais trechos da entrevista.

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O POVO – O que é a IGLTA?

Clóvis Casemiro – IGLTA, em inglês, é a sigla para International Gay and Lesbian Travel Association (Associação Internacional de Turismo Gay e Lésbico, em tradução direta). Atualmente nós traduzimos como Associação Mundial de Turismo LGBTQ+. A gente não mudou, quer manter a sigla IGLTA, mas nos colocamos como representantes do turismo LGBTQ+. A Associação existe já há 36 anos. Nós, agora em abril, fizemos nossa 36ª Convenção, em Nova York (EUA). Foi a nossa maior convenção até hoje, com 700 participantes e 49 países representados. Foi para nós uma surpresa muito grande. Ano passado, em Toronto, já havia sido bastante significativo, com quase 500 pessoas. Mas realmente subimos o número de pessoas interessadas no turista LGBT.

OP – Que tipo de entidades integram a Associação?

Clóvis – Nós temos desde hospedagem, tudo o que você puder imaginar nesse segmento, o AirBnb é um dos nossos membros, inclusive um de nossos parceiros bem fortes, até redes grandes de hotelaria como Belmont (rede britânica de hotéis de luxo), a Marriott (grupo estadunidense presente em 131 países), a Hilton (criada em 1925) são todas membros mundiais. Também temos hotéis pequenos, pousadas. Temos companhias aéreas, (empresas de) cruzeiros marítimos, fluviais, locadoras de carros... Ou seja, basicamente tudo o que está envolvido com o turismo e que tenha interesse de receber esse turista. Por isso que é importante a gente sempre se referendar dessa forma. Não é o turista LGBTQ que está buscando, são estas empresas com quem a gente está trabalhando para que estes turistas se interessem, que possam se tornar clientes destas empresas e fidelizar esse relacionamento. Esse é o nosso trabalho. A partir do momento em que você tem empresas que estão interessadas, esse turista vai ter uma experiência diferenciada, porque a empresa está pensando nele também quando ele chega.

OP – Quantos membros a Associação tem no Brasil?

Clóvis – Neste momento a gente está com entre 37 e 39 membros, porque esse número é variável. Nós já tivemos bem mais membros no Brasil, houve um pouco de queda recentemente. Eu acho que essa situação do governo (Bolsonaro) acabou atrapalhando realmente um pouco. Não fiz uma pesquisa sobre isso, mas é feeling, você sabe. Tenho notado uma dificuldade maior na abordagem do trade, depois desse posicionamento infeliz que nós tivemos de não trabalhar o turista LGBT no Brasil, o que é ridículo. Mas é preciso explicar que essa é uma situação da cabeça de uma pessoa, não é uma postura oficial. O Brasil não disse que não quer o turista LGBT. Impossível!

OP – Você poderia explicar melhor?

Clóvis – Vamos falar de Fortaleza só, por exemplo. Vocês têm aqui o hub (aéreo) com a Europa. Vocês podem receber aqui turistas LGBT de todos esses países europeus! E eles vão adorar as praias, adorar o ambiente... Tem que só se preparar um pouquinho mais para que eles não tenham a sensação de que não são bem-vindos. E não pode esquecer o hub para os Estados Unidos, que é um dos maiores mercados LGBTs do mundo.

OP – Antes desse posicionamento do presidente Bolsonaro, havia uma política federal de captação do turista LGBT?

Clóvis – Existiam os termos que estavam dentro deste plano de ações para o turismo, mas eles nunca atuaram com a gente tão de perto. Estava lá no plano, mas nunca foi efetivo como o da Argentina, por exemplo. É tanto que o Vinicius Lummertz (ex-ministro de Turismo do Brasil na gestão de Michel Temer e atual secretário de Turismo do estado de São Paulo) quando estava no Ministério teve uma reunião com o ministro de Turismo da Argentina, que lhe disse que a Argentina tem interesse no turista LGBT brasileiro lá. Aliás, ele levou grupos LGBTs para falar com o Lummertz. Para você ver!

OP – A declaração do presidente afeta o trabalho da ILGTA no Brasil?

Clóvis – Essa fala do Bolsonaro preocupa? Sim, óbvio! Mas não vamos parar de trabalhar e avançar. Já são muitos anos de estrada. Só aqui no Brasil já são 20 anos de IGLTA, no mundo são 36 anos. E é factível (este mercado) para Madri (Espanha), para Nova York (EUA)... São cidades que já recebem 55 milhões de turistas por ano e ainda assim se preocupam com suas Paradas Gays, e em estar presentes, em participar de verdade, em entender que as prefeituras vão ganhar dinheiro, vão receber impostos, que este mercado atrai turistas. Isso que a gente no Brasil ainda não entendeu muito bem as várias possibilidades deste negócio que nós temos no turismo LGBT.

OP – Qual é a participação do segmento no mercado brasileiro e mundial?

Clóvis – Nós trabalhamos internacionalmente com o UNTWO (sigla para World Tourism Organization, que é a agência das Nações Unidas responsável pela promoção do turismo responsável, sustentável e universalmente acessível). Então, segundo as Nações Unidas, temos índices entre 8,5% e 10% da população (LGBT+). Mas estes 10% do turismo, digamos assim, representam 15% do valor arrecadado com o turismo. E é com este índice que nós trabalhamos mundialmente.

OP – Você quer dizer que o segmento tem um ticket de gastos mais alto que a média?

Clóvis – Isso! Essa diferença aparece muito forte nos mercados americanos e europeus. Aqui no Brasil, infelizmente, nós não temos pesquisa para falar sobre isso, mas eu acho que são realidades que podem se aproximar. Vamos pensar nos nossos seis milhões de turistas estrangeiros, se 10% forem LGBTs, estamos falando de 600 mil pessoas. É significativo! A Parada de São Paulo, que é a maior do mundo, é um bom exemplo que a gente pode dar. A SP Turis (empresa oficial de turismo e eventos da cidade de São Paulo) chegou a fazer umas três pesquisas de mercado durante a Parada, e registrou um aumento de 60% para 80% na ocupação hoteleira, e um aumento do ticket médio de 20% a 25% no período. Lembrando que a gente faz a Parada durante um feriado (anualmente a Parada de SP ocorre no domingo após o feriado de Corpus Christi, que sempre é numa quinta-feira). Nesse período, antigamente, todo mundo saia de São Paulo, ia curtir o feriadão fora, o movimento na cidade era zero. A Parada trouxe um incremento para um feriado que mudou a cidade.

OP – Já há uma compreensão do mercado a respeito do potencial deste segmento?

Clóvis – Algumas empresas já estão despertando e se posicionando diferentemente. Porque não dá mais para nós, do turismo LGBT, ficar dependendo do dinheiro público. A gente sabe que eles não têm. Eles não têm dinheiro para hospital nem para segurança pública! Então, nós temos que ir nas empresas privadas, que é aí que nós teremos resultados. É tanto que no ano passado, a Parada de São Paulo teve uma campanha gigantesca da Uber, a rede Accor (hotéis) fez um trabalho incrível também, a Skol, o Doritos... Neste ano vamos ter a presença do Google, inclusive o presidente brasileiro do Google vai estar na Parada. Ano passado o pessoal do Google fez uma campanha bonita com camisetas e bandeiras brancas, mas foi uma coisa singela para o tamanho da empresa. Este ano acho que eles vão fazer uma coisa bem mais significativa. Tivemos também o estado de Israel ano passado na Parada, que participou junto com a Câmara de Comércio (e Turismo LGBT do Brasil). Eles fizeram uma campanha muito bonita. Israel é um destino LGBT importantíssimo! E eles vieram divulgar a Parada de Tel Aviv, que é uma das mais fervidas do mundo. Acho que o Bolsonaro não sabe que Israel gasta dinheiro público para atrair o turismo LGBT para lá! (risos). Ele também não deve saber que os militares de Israel podem ser gays e até se casar dentro dos quarteis (risos). Israel trabalha o turismo LGBT com muita força, é também um dos nossos principais destinos dentro da convenção da IGLTA, e sempre estão muito presentes.

OP – Na mais recente edição da revista Via G (especializada em turismo LGBT) você assina um artigo em que defende a importância de distinguir o turismo LGBT do turismo sexual. Por que é tão importante essa diferença?

Clóvis – Com certeza é importantíssimo. Estamos numa cidade (Fortaleza) que batalhou muito para não receber turismo sexual. Recife (PE) também, porque ambas recebiam muitos voos charters da Europa com essa finalidade. O turismo sexual é o pior que nós podemos falar em segmentação turística, se é que nós podemos chamar isso. Mas infelizmente essa segmentação existe. No meu artigo eu explico que essa confusão só acontece na cabeça de uma pessoa que não entende o mercado, não está envolvido, que não fez nenhuma pesquisa a respeito. Eu nem gosto de dar muito cabimento (a essa colocação), porque eu entendo que do jeito que foi falado é só uma postura própria.

OP – Não é uma postura oficial.

Clóvis – De jeito algum. Porque mesmo tirando (o incentivo ao turismo LGBT) do compromisso do planejamento federal para o setor, que aliás era muito simples, quase não tinha... Qual o planejamento que havia para atender o turista LGBT estrangeiro? Nenhum! Nunca houve um planejamento de apresentar o Brasil como destino para o Turismo LGBT nas grandes feiras mundiais, como a Argentina faz, por exemplo. E é viável mesmo, mas tem que se preparar para isso. Por exemplo, Nova York (EUA). Você quer conhecer o roteiro LGBT de Nova YorK? Está lá na página oficial da cidade. Paris? A mesma coisa, está na página oficial da cidade, em abas específicas. Fora outros países como, a Islândia, que nós estamos trabalhando agora. Então, turismo sexual é uma coisa que nós não queremos de jeito nenhum em nenhum de nossos segmentos. Isso precisa ser deixado muito claro, rebaixa as pessoas, envolve tráfico humano... Quando falamos de turismo LGBT estamos falando de pessoas LGBT viajando, usando avião, usando hotéis, usando transportes terrestres, ou seja, é um turista como todos os outros que nós estamos buscando para o nosso País.

OP – Para a gente terminar, existem duas informações aparentemente contraditórias. A primeira é que a gente ganhou em 20 anos uma visibilidade para a comunidade LGBT que não existia e que era impensável. Isso é inquestionável. A segunda é, como você disse, que existe uma sinalização de um recuo desse mercado voltado aos LGBT. Como se equilibra essa equação?

Clóvis – É ótima essa pergunta. Eu acho que os 20 anos vão prevalecer. Porque não são duas décadas de um trabalho simples. Foram muitos investimentos. Se você pegar o que a gente tinha quando começou a Parada de São Paulo (em 1997) e o que tem hoje em dia, com quase 200 Paradas no País, então a gente já tem aí uma reflexão muito maior. Quando você tem uma liga LGBT, que é apartidária, e que estava lá no STF batalhando para que a gente criminalizasse a homofobia é um claro sinal de avanço. A declaração contra o turismo LGBT foi muito recente, então é muito difícil falar o que vai acontecer. Agora nós da IGLTA, junto com a Câmara (do Comércio e Turismo LGBT) e outros membros aqui no Brasil, a gente fez um trabalho de bastidores (para reverter os danos causados pela fala do presidente). É tanto que você vê, a gente nem fala mais sobre isso. A gente está usando isso como se fosse da cabeça de uma única pessoa e não um plano de ação. Porque quando você vai falar diretamente com as prefeituras, com o estado, com a indústrias privada, você vê que eles continuam com interesse. Eles entendem que existe (o segmento) e que isso não será uma barreira para que o turista LGBT venha para cá. Então, eu acho que nós vamos ganhar essa. A gente, pelo menos, não vai se deixar abater (risos).

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